Revista
Andes, Antropología e Historia
Vol.
33, Nº 1, Julio – Diciembre 2022
Esta obra está bajo
licencia de Creative Commons Atribución - No Comercial CC BY-NC
https://creativecommons.org/licenses/by-nc/4.0/ ISSN Nº 1668-8090
“TUDO SE PROIBIA, SÓ A MORTE NÃO ERA PROIBIDA!!”: AS
RESTRIÇÕES ÀS ENCOMENDAÇÕES DE CADÁVERES DURANTE A EPIDEMIA DE FEBRE AMARELA NO
RIO DE JANEIRO (1848-1851)
“¡¡TODO
ESTABA PROHIBIDO, SOLO LA MUERTE NO ESTABA PROHIBIDA!!”: RESTRICCIONES A LOS
OFICIOS DE DIFUNTOS DURANTE LA EPIDEMIA DE FIEBRE AMARILLA EN RÍO DE JANEIRO
(1848-1851)
“EVERYTHING WAS
PROHIBITED, ONLY DEATH WAS NOT PROHIBITED!!”: RESTRICTIONS TO OFFICE OF THE
DEAD DURING THE YELLOW FEVER EPIDEMIC IN RIO DE JANEIRO (1848-1851)
Claudia Rodrigues
Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO
claudia.rodrigues@unirio.br
Fecha de ingreso: 30/05/2022
Fecha de aceptación: 01/09/2022
Resumo
Diante da grave epidemia de febre amarela
que assolou a cidade do Rio de Janeiro entre fins de 1849 e meados de 1850, uma
série de medidas foi implementada pelo governo imperial, mediante suporte de
médicos higienistas, com vistas a reduzir a quantidade de doentes e de mortes.
A partir da análise da legislação higienista, das constituições sinodais da
Bahia, artigos de jornais e registros paroquiais de óbito de quatro freguesias
urbanas da Corte, busca-se identificar de que modo os dispositivos sanitários impostos
pelo governo imperial interferiram na dinâmica da tradicional prática da
encomendação de cadáveres, considerada pela hierarquia eclesiástica como de
caráter sagrado, clerical e de jurisdição paroquial, suscitando reações do
clero católico da Corte e deixando marcas para além do contexto epidêmico.
Palavras-chave: epidemia de febre amarela, dispositivos
sanitários, costumes fúnebres, encomendação de cadáveres, paróquia
Resumen
Ante la grave epidemia de fiebre
amarilla que asoló la ciudad de Río de Janeiro entre fines de 1849 y mediados
de 1850, el gobierno imperial implementó una serie de medidas, con el apoyo de
higienistas, para reducir el número de pacientes y
muertes. A partir del análisis de la legislación higienista, las constituciones
sinodales de Bahía, artículos de prensa y actas parroquiales de defunción de
cuatro parroquias urbanas de la Corte, buscamos identificar cómo los dispositivos sanitarios impuestos por el gobierno
imperial interfirieron en la dinámica de la práctica tradicional de oficio de
difuntos, considerado por la jerarquía eclesiástica como de jurisdicción
sagrada, clerical y parroquial, suscitando reacciones del clero católico de la
Corte y dejando huellas más allá del contexto epidémico.
Palabras clave: epidemia de fiebre amarilla, dispositivos
sanitarios, costumbres funerarias, oficio de difuntos, parroquia
Abstract
KEywords:
yellow fever epidemic, sanitary devices, funeral
customs, office of the dead, parish
Em trabalhos anteriores demonstrei de que modo a febre
amarela contribuiu para a significativa alteração da prática de sepultamento no
Rio de Janeiro representando o marco do fim dos enterros nas igrejas e da
criação de cemitérios extramuros há décadas
demandados[1]. A questão que me ponho no
presente artigo é a análise sobre o modo pelo qual o número de mortes, o
medo do contágio e os dispositivos sanitários impostos pelas autoridades
governamentais interferiram na dinâmica paroquial do tradicional ritual
católico da “encomendação de cadáveres” que antecedia o sepultamento
propriamente dito. Para tal, farei uso de avisos,
portarias e regulamentos que compuseram os dispositivos sanitários; de artigos
de jornal e outros documentos por meio dos quais podemos identificar reações do
clero católico; e de uma amostragem de registros paroquiais de óbito de quatro das
oito freguesias urbanas da cidade do Rio de Janeiro: São José, Candelária,
Santa Rita e Santana[2], que
ocupavam a área central e mais populosa da Corte, estavam situadas próximo ao
porto e as duas primeiras, especialmente, sediavam as principais instituições
imperiais e parte significativa do comércio, dentre outras características[3]. O total de 4.993 registros foi reunido mediante a transcrição
dos assentos de óbito de cada freguesia em um único banco de dados do Access,
da Microsoft, referentes ao período de um ano que antecedeu a epidemia
(do início de novembro de 1848 ao fim de novembro de 1849, com total de 1.830
registros), o período de oito meses durante o surto epidêmico (entre o
início de dezembro de 1849 e o final de agosto de 1850, seguindo a periodização
de José Pereira Rego, com o total de 1.812 registros) e o período de um pouco
mais de um ano após a febre amarela (entre setembro de 1850 e fim
de dezembro de 1851, contendo 1.284 registros). A partir destas fontes foi
possível relacionar os dispositivos sanitários a aspectos da dinâmica paroquial
da encomendação de cadáveres ao longo destes três períodos, com vistas a
identificar de que modo as restrições governamentais reverberaram na realização
das cerimônias religiosas que faziam parte das exéquias, suscitando reações
entre o clero católico. Devido aos limites de espaço deste artigo, não será
possível fazer uma análise mais detida acerca do impacto da epidemia sobre a
prática cotidiana de encomendação de cadáveres em diferentes paróquias da
Corte, considerando as clivagens sociais da ritualização de uma importante
etapa dos funerais católicos. Assunto que será abordado em outro artigo.
“Tudo
se proibia, só a morte não era proibida!!”[4]
Introduzida em Salvador, na província da Bahia, em 30 de
setembro de 1849, por intermédio de uma embarcação proveniente de New Orleans
com marinheiros contaminados, a febre amarela se alastrou por diferentes cidades
portuárias do Brasil. Foi também de Salvador que chegou ao porto do Rio de
Janeiro, em 3 de dezembro, instalando-se vagarosamente desde então até se intensificar
em fevereiro de 1850[5].
Até esse mês houve resistência e demora de instituições médicas e autoridades
governamentais em admitir que uma epidemia estava instalada na cidade, em que
pese o alerta dado por médicos, como Robert Avé-Lallemant[6],
desde dezembro de 1849. Somente em 5 de fevereiro de 1850 o Ministério dos
Negócios do Império deu início a ações de combate ao surto. Para tal, criou uma
Comissão Central de Saúde Pública formada por um grupo de médicos ligados à
Academia Imperial de Medicina[7].
Uma semana depois, a comissão produziu uma lista de conselhos higiênicos e
providências a serem tomadas pela população da Corte para prevenir o
acometimento da epidemia e tornar seus efeitos menos graves. Com base neste documento,
o Ministro dos Negócios do Império, Visconde de Monte Alegre, publicou o Aviso
imperial de 14 de fevereiro de 1850[8],
dirigido ao presidente da câmara municipal do Rio de Janeiro, Dr. Candido
Borges Monteiro. Por meio dele, determinou a divulgação dos conselhos
higiênicos na imprensa da Corte e ordenou que a câmara municipal organizasse as
medidas que julgasse necessárias para tornar a epidemia “menos funesta”,
fazendo uso de uma lista com 33 artigos anexados ao Aviso imperial relacionando
as providências que o Ministério mandava executar para prevenir e atalhar o
progresso da febre amarela.
Seis eram relativos a enterros, funerais e luto. O art. 12
proibia multiplicados enterros numa só igreja, mandando que tão logo fosse
possível as inumações deveriam ser feitas extramuros. O art. 13 determinava que
uma comissão médica a ser criada em cada freguesia visitaria as respectivas
igrejas para examinar se as inumações correspondiam à quantidade de sepulturas dos
templos ou se haveria exumações extemporâneas[9].
Pelo art. 14 ficavam “absolutamente proibidas” as armações fúnebres dentro e
fora das casas, a fim de evitar “a impregnação e o transporte de miasmas”. O
art. 15 ordenava que as encomendações fossem feitas nas casas dos falecidos e
que os cadáveres seriam conduzidos sem demora para sepultura em caixões construídos
todos de madeira e hermeticamente fechados para não serem abertos por ocasião
do enterro. No art. 16 se proibia inteiramente os dobres de sinos. Por fim, o
art. 17 proibia que as casas fossem fechadas durante o período de “nojo”
(luto), devendo-se conservar as portas e janelas abertas para haver maior
ventilação[10].
Em resposta à determinação imperial, o presidente da câmara municipal
publicou o Edital de 19 de fevereiro, intitulado “Proíbe multiplicados enterros
em uma só igreja”. Neste documento ele determinava a publicação e afixação de
um texto contendo apenas oito dos 33 artigos anexados ao Aviso do Ministério do
Império. Dentre estes, cinco se referiam a enterros, funerais e luto, reproduzindo
o teor dos artigos acima mencionados, mas omitindo a proibição de dobre de
sinos e a menção de que logo que fosse possível os enterros seriam “todos
extramuros”[11]. Com
essas omissões, a câmara evitava intervir na costumeira prática de dobrar os
sinos para sinalizar a morte e o enterramento dos moribundos[12]
e, mais ainda, continuava a se esquivar da execução da legislação imperial que
atribuía à municipalidade o estabelecimento de cemitérios extramuros na cidade
do Rio de Janeiro[13].
Há que se destacar também que entre os conselhos indicados pela Comissão
Central de Saúde Pública às famílias, publicados nos jornais de 14 de
fevereiro, não havia menção alguma aos artigos relativos aos funerais e
enterros contidos no Aviso imperial e no Edital da municipalidade[14].
O que significa que neste primeiro momento não houve publicização das restrições
funerárias que as autoridades mandavam ser seguidas naquela conjuntura
epidêmica.
Dentre os médicos que compunham a Comissão Central de Saúde
Púbica, estava o dr. José Maria de Noronha Feital, autor de um artigo sobre as
medidas para prevenção da febre amarela publicado inicialmente em um periódico
médico e divulgado posteriormente num opúsculo[15].
Esta obra foi a base teórica para a elaboração do Aviso imperial e de outro
dispositivo sanitário mais robusto que foi o Regulamento Sanitário publicado em
4 de março para ser adotado nas oito paróquias centrais da Corte[16].
Diferentemente do Aviso, o Regulamento foi divulgado em diferentes jornais do
Rio de Janeiro, “armando pela primeira vez, todo um dispositivo de
esquadrinhamento e disciplina do espaço urbano”[17].
Dos 28 artigos nele contidos, o tema dos funerais, enterros e luto aparecia em
três, sintetizando todas as medidas presentes nos outros dois documentos produzidos
em fevereiro[18]. Vale a
pena reproduzir o conteúdo para identificarmos a lógica do agrupamento feito. O
artigo 9 proibia que se realizassem múltiplos enterros numa única igreja e determinava
a fiscalização sobre se os sepultamentos eram feitos segundo as regras
prescritas de que as inumações deveriam ter relação com a quantidade de
sepulturas existentes nos templos, proibindo que se fizessem exumações fora do
tempo determinado. Para tal, foi exigido que párocos, confrarias e irmandades
deveriam providenciar “sem demora” uma relação das sepulturas de cada igreja identificando
as que se encontravam ocupadas e desde quando. O objetivo aqui parece ser o de
evitar o acúmulo de cadáveres na mesma sepultura e/ou que se retirasse um corpo
já inumado antes do tempo necessário para dar lugar a outro, evidenciando que a
recorrência da expressão “multiplicados enterros numa só igreja” nos documentos
anteriores parecia ser uma prática conhecida e a qual se buscava restringir. O
artigo 10 determinava a interrupção dos dobres de sinos, as armações funerárias
dentro e fora das casas e que, “depois de feita a encomendação em casa”, os
caixões seriam “hermeticamente fechados” para não serem abertos nas igrejas sob
“nenhum pretexto”. Por fim, o artigo 11 proibia que durante o nojo (luto) se
fechasse as casas em que tivesse falecido alguém de febre amarela[19].
Com estas medidas, a Comissão Central de Saúde Pública buscou
controlar o contato da população com os miasmas[20]
cadavéricos. Para médicos sanitaristas como o Dr. Feital[21],
somente assim se evitaria “respirar-se miasmas que sempre prejudicam, e que aumentem
a repugnância que se tem aos mortos”. O risco das armações funerárias feitas
nas casas era que os objetos e tecidos se impregnassem de exalações cadavéricas
contaminando as outras casas que fariam uso dos mesmos objetos alugados[22].
Motivos pelos quais se proibiam as armações funerárias das casas e igrejas, assim
como os caixões de grades cobertos de veludo ou pano que deixavam transpirar os
miasmas. Ao criticar o costume de se fechar as janelas e as portas das casas em
que se encontrava um cadáver, algumas vezes em adiantado estado de putrefação,
ele argumentava que respirar neste ambiente representava um sacrifício para os
vivos e uma "mísera" prática em nada útil ao morto, que considerava sinal
de "barbaridade"[23].
Mas, se por um lado tais medidas visavam ocultar dos vivos o cheiro dos mortos[24],
por outro não proibiram a inumação no interior dos templos. O aumento do número
de mortes, entretanto, seria determinante para o acirramento das restrições às
práticas funerárias.
Segundo o relato do médico José Pereira Rego - presidente da
Academia Imperial de Medicina e da Junta Central de Higiene Pública -, março
foi o mês em que a epidemia fez mais vítimas na cidade, ultrapassando a
quantidade de 90 mortos no dia 15[25].
Para identificar de que modo esta afirmação transparece em nossa amostragem,
agrupei os assentamentos por intervalo semanal entre o início de dezembro de
1849 e 31 de agosto de 1850. Feito isso, identifiquei e recortei o período com
maior concentração de falecimentos ao longo do surto epidêmico, cujos índices
se encontram no Quadro 1. Para evidenciar o que podemos considerar aqui como o
pico da epidemia nas quatro freguesias analisadas, usei cores que identificam o
gradativo aumento/diminuição dos índices semanais (em amarelo e laranja), o
momento de intensificação das mortes (em vermelho) e a semana com o maior
índice de óbitos (em vinho). Neste recorte, é possível verificar que a
concentração dos falecimentos ocorreu entre 21 de fevereiro e 01 de maio[26],
sendo o intervalo de 7 de março a 10 de abril a fase de pico dos óbitos, cuja concentração
se deu na semana entre 21 e 27 de março.
QUADRO 1: Quantidade
de registros de óbitos em intervalo semanal
SEMANA |
TOTAL REGISTROS |
MÉDIA POR DIA |
30 de janeiro a 06 de fevereiro de 1850 |
51 |
7,3 |
07 a 13 de fevereiro de 1850 |
44 |
6,3 |
14 a 20 de fevereiro de 1850 |
50 |
7,1 |
21 a 27 de fevereiro de 1850 |
82 |
11,7 |
28 de fevereiro a 06 de março de 1850 |
99 |
14,1 |
07 a 13 de março de 1850 |
124 |
17,7 |
14 a 20 de março de 1850 |
122 |
17,4 |
21 a 27 de março de 1850 |
131 |
18,7 |
28 de março a 3 de abril de 1850 |
115 |
16,4 |
04 a 10 de abril de 1850 |
115 |
16,4 |
11 a 17 de abril de 1850 |
80 |
11,4 |
18 a 24 de abril de 1850 |
72 |
10,2 |
25 de abril a 01 de maio de 1850 |
58 |
8,3 |
02 a 08 de maio de 1850 |
43 |
6,1 |
FONTE: Banco de
Dados de Óbitos das Freguesias do Rio de Janeiro[27].
A intensidade da epidemia neste mês de março chegou ao “ponto
de já não haver lugar quase nos templos para se sepultarem os corpos”, nas
palavras de Pereira Rego[28].
Afirmação idêntica foi feita pelo médico Robert Avé-Lallemant, ao dizer que
“nas igrejas não cabiam mais os cadáveres”[29].
Exemplo do excesso de sepultamentos nos templos em nossa amostragem foi o do
dia 9 de março, que concentrou 31 inumações. Excetuando os cinco casos de
igrejas com apenas um sepultamento, os demais foram distribuídos da seguinte
forma: nove cadáveres na igreja matriz de Santa Rita; cinco na igreja de Nossa
Senhora da Conceição e Boa Morte; três nas igrejas de São Domingos e de Santo
Antônio dos Pobres e dois na matriz do Santíssimo Sacramento e nas igrejas do
Convento do Carmo e da Ordem Terceira de S. Francisco da Penitência[30].
Diante de tal quadro, já no dia seguinte ao 15 de março, o
Ministério dos Negócios do Império expediu uma Circular para o bispo,
paróquias, capelas, ordens terceiras e conventos da Corte, além da câmara
municipal[31],
determinando o fim definitivo dos enterramentos nas igrejas das freguesias
centrais da cidade do Rio de Janeiro[32].
Este foi um dos dispositivos sanitários mais representativos de toda a epidemia
de febre amarela no Rio de Janeiro, pois eliminou definitivamente a tradicional
prática de sepultamentos nas igrejas da Corte, após meio século de infrutíferas
tentativas de implantação por parte das autoridades governamentais e médicas. Em
substituição às igrejas, o Visconde de Monte Alegre ordenou que os
enterramentos fossem destinados a dois dos maiores cemitérios descolados dos
templos então existentes e, portanto, mais afastados da cidade: o Campo Santo
da Santa Casa da Misericórdia (destinado aos indigentes, escravos, mortos no
hospital da Misericórdia, dentre outros), localizado na Ponta do Caju, que
ficava no extremo norte da cidade; e o recém-criado cemitério da Ordem Terceira
de São Francisco de Paula (destinado até então ao enterramento dos seus
irmãos), situado no Catumbi, uma área mais distante das ruas centrais da cidade
e pertencente à freguesia de Santana, mas que se encontrava mais próximo das
freguesias urbanas do que o Campo Santo da Misericórdia[33].
Devido a esta localização mais favorável, o Cemitério do Catumbi
ocuparia, doravante, o centro das atenções no que se refere às medidas de
controle da epidemia. Sua construção se iniciara em novembro de 1849, um pouco
antes de a epidemia chegar ao Rio de Janeiro e fez parte do projeto de expansão
do espaço para sepultamento dos irmãos da Ordem Terceira de São Francisco de
Paula em virtude de as catacumbas de sua igreja serem recorrentemente
procuradas para sepultura das “pessoas mais notáveis” da cidade[34].
Já antes da publicação da Circular de 16 de Março, o cemitério do Catumbi havia
sido requisitado pelo Chefe de Polícia da Corte, Antônio Simões da Silva, para
dar sepultura ao número crescente de mortos da cidade. Em ofício enviado em 5
de março à Ordem Terceira de São Francisco de Paula, solicitou que o cemitério
em construção desse sepultamento naquele mesmo dia a todos os cadáveres para lá
remetidos, em atendimento à urgência do bem público. Provavelmente devido ao
não cumprimento desta determinação, a ordem terceira foi acionada três dias
depois, desta vez pelo Ministro dos Negócios do Império, que enviou novo ofício
com o mesmo teor. Neste documento, o Visconde de Monte Alegre determinava que,
diante da necessidade de enterrar os cadáveres em cemitérios extramuros, aquela
venerável ordem terceira providenciasse as medidas necessárias para o
sepultamento no terreno de seu cemitério a todos os corpos que para lá fossem
remetidos, “ficando para este efeito suspensas e dispensadas quaisquer
formalidades” do seu Compromisso que retardassem o cumprimento daquele
dispositivo imperial[35].
É possível que, por se tratar de uma ordem terceira que congregava a elite
social, os terceiros franciscanos tenham criado embaraços para receber
indiscriminadamente os cadáveres de todos os segmentos sociais, com base no
argumento de que a necrópole se destinava apenas aos irmãos a ela afiliados.
Somente cerca de quinze dias após o recebimento do primeiro
ofício o cemitério do Catumbi entraria em funcionamento; o que ocorreu no dia
20 de março, após o espaço receber a bênção solene do Vigário Geral do Bispado
do Rio de Janeiro, Monsenhor Narciso da Silva Nepomuceno. Desde então, ele concentrou
75,7% dos sepultamentos de nossa amostragem; enquanto 19,1% foram inumados no Campo
Santo da Misericórdia, no Caju; e 1,16% no cemitério do Hospício de Pedro II[36].
Estes dados demonstram que o cemitério do Catumbi funcionou como “cemitério
público” provisório durante o período epidêmico[37].
Um dos motivos da preferência da população por este cemitério era a sua
localização. Se a região da Praia Vermelha, onde se localizava o cemitério do
Hospício de Pedro II, estava bastante longe da área central da cidade, o
“longínquo bairro da Ponta do Caju”[38]
era igualmente distante da área central. Paradoxalmente, outro fator que
contribuiu para a concentração de sepultamentos no Catumbi se relaciona às
características daquela sociedade escravista, profundamente hierarquizada, cujas
diferenciações sociais afetavam as atitudes diante da morte[39].
Reconhecido à época como cemitério destinado às pessoas mais notáveis da
sociedade, o Cemitério do Catumbi atrairia as famílias com mais posses que
buscavam sepultamento menos distante da área central da cidade[40]
e associado a isso, não podemos esquecer o fato de a epidemia ter afetado parte
da elite social da época. Em contraposição, o Campo Santo da Misericórdia, criado
em 1839, era destinado aos desprivilegiados daquela cidade[41].
A concentração dos sepultamentos no cemitério da ordem
terceira de São Francisco de Paula poria fim à fragmentação dos cortejos e
sepultamentos pelas dezenas de igrejas das oito paróquias urbanas da Corte,
algumas das quais realizavam sepultamentos há cerca de trezentos anos[42].
Dentre estas, a maioria absoluta se localizava nas freguesias do Santíssimo
Sacramento, Candelária, de São José, Santa Rita e Santana. O Mapa 1 mostra a
espacialidade da área central que reunia estas igrejas (algumas estão
identificadas pela numeração da legenda) e sua distribuição entre as ruas
centrais da Corte. Nesta representação espacial, a distância do cemitério do
Catumbi e do Campo Santo da Misericórdia é evidenciada pela sua ausência no
mapa. Mas, para efeitos de orientação, a seta em vermelho, na parte inferior
esquerda mostra a direção do Campo Santo da Misericórdia, na Ponta do Caju, para
além do mapa. A seta laranja na parte inferior mais central, sobre a legenda
com os nomes das igrejas marca a área aproximada da localização do cemitério do
Catumbi; ou seja, menos distante da área central do que o Campo Santo da Ponta
do Caju.
É possível que a existência de dezenas de templos pela área
central da Corte minimizasse a imagem de muitos cadáveres sepultados num único
local. Ainda que elas representassem o ponto de interseção dos cortejos
fúnebres que atravessavam diariamente as ruas da cidade no auge da epidemia,
com pessoas ou coches carregando seus caixões – de casa para um templo e, por
vezes, passando por mais de uma igreja, antes de chegar à sepultura de destino
do cadáver –, a distribuição dos sepultamentos pelas igrejas fragmentava a
imagem da morte naquela conjuntura. Diferentemente desta pulverização, acredito
que a concentração das inumações nos dois cemitérios especificados pelo
Ministério do Império contribuiria para intensificação do medo da epidemia e de
seu impacto mortal sobre a população da Corte, especialmente pelo fato de o
cemitério do Catumbi ter aglutinado um alto percentual dos sepultamentos da
Corte, a exemplo dos 3/4 das inumações das quatro freguesias de nossa
amostragem. Exemplos são as dezenove inumações em 20 de março (no primeiro dia
de seu funcionamento) e vinte e três em 23 de março[43].
Esta situação nos permite compreender por que Avé-Lallemant afirmou que nunca
se esqueceria “da triste impressão que senti quando algumas vezes encontrei uma
verdadeira fileira de cortejos fúnebres seguindo o caminho para Catumbi, quando
vi voltar os carros em indigna desordem e grande pressa para buscar mais
fregueses, como naqueles dias”[44].
Os “dias” mencionados por ele poderiam ser aqueles posteriores ao 20 de março,
quando o Catumbi começou a receber centenas e mais centenas dos mortos da
Corte.
Mapa 1:
Principais freguesias “urbanas” da cidade do Rio de Janeiro[45]
FONTE: Adaptado de Karasch, Mary
(2020), A vida dos escravos no Rio de Janeiro: 1808-1850, São Paulo,
Companhia das Letras, p. 103.
Assim como o efetivo fim dos sepultamentos nas igrejas, outros
elementos dos rituais fúnebres católicos seriam impactados pelos dispositivos
sanitários implementados pelas autoridades governamentais para controle da
epidemia de febre amarela. Este seria o caso da encomendação dos cadáveres que
passo a analisar, com vistas a responder se as medidas a ela relacionadas teriam
implicado em alterações circunscritas ao período do surto ou se influenciariam definitivamente
a prática das exéquias na Corte.
Impactos
das restrições governamentais sobre a dinâmica paroquial da encomendação dos
mortos
Importante etapa do funeral católico, o ofício de
encomendação do cadáver era a cerimônia que antecedia o sepultamento
eclesiástico e podia implicar na maior ou menor aglomeração de fiéis e clero
dependendo das posses, posição social e redes de sociabilidade da família do
morto. De um ritual realizado apenas pelo coadjutor da paróquia, circundado pela
família e amigos mais próximos ao morto, poderia ter aparato solene que incluía
um público mais alargado composto de até dezenas de sacerdotes acompanhando o
pároco, além de parentes, amigos, associações religiosas e até curiosos. Consistindo
na parte das exéquias, era composta pelas cerimônias litúrgicas que antecediam
a deposição do morto na sepultura, quando o clero pronunciava orações, cantos e
ofícios imediatamente após a morte, durante o velório quando o corpo estava
exposto para a realização das despedidas. Em que pese a diferenciação entre um
cerimonial com maior ou menor quantidade de sacerdotes, música e armação do
ambiente, era a direção paroquial o aspecto que singularizava o ritual no qual
se encomendava a alma do defunto. Segundo as Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, que desde 1720 foram estendidas a toda a América
portuguesa, o Direito Canônico determinava que nenhum defunto podia ser
enterrado sem primeiro ser encomendado pelo seu pároco ou outro sacerdote a seu
mandado. Para tal, as constituições sinodais ordenavam e mandavam que sempre
que alguma pessoa morresse seu pároco deveria ser avisado com toda brevidade
para que acudisse e encomendasse o fiel falecido com muita diligência onde este
estivesse, portando sobrepeliz e estola preta ou roxa e guardando a forma
disposta no Ritual Romano[46].
Além da dimensão clerical da encomendação, a sua compreensão
como de direito paroquial decorria da afirmação de que os defuntos deveriam ser
acompanhados pelo pároco de quem em vida receberam os sacramentos. No caso de
algum defunto manifestar o desejo de ser enterrado fora de sua paróquia, ele deveria
dar ao seu pároco a quarta parte das ofertas e esmolas para pagamento dos
ofícios. Por este mesmo motivo, no caso de um pároco ter notícia do falecimento
de alguma pessoa de fora de sua freguesia, era preciso mandar recado ao pároco
da freguesia original para que este fosse encomendar seu paroquiano com
diligência e ordem. Caso o pároco chamado não aparecesse para encomendar e
acompanhar seu freguês defunto por si ou por outro clérigo com sua licença (em
caso de estar legitimamente impedido de realizar a cerimônia), ele deveria
pagar multa de mil réis por cada ausência. Ainda segundo as constituições
sinodais, o clérigo que enterrasse um defunto sem ser encomendado e acompanhado
pelo respectivo pároco deveria ser gravemente castigado, a não ser que ficasse
comprovado que ele havia chamado o pároco original e este não comparecera nem
enviara alguém diante de eventual impedimento.[47]
Se o defunto tivesse que ser enterrado em outra igreja que não fosse a da sua
freguesia ou mosteiro de religiosos, seu pároco deveria estar presente para
fazer o ofício da encomendação e os demais ofícios de acompanhamento até entrar
na igreja da sepultura[48].
Segundo o texto sinodal, as encomendações não deveriam ocorrer fora das igrejas
onde os defuntos fossem enterrados ou onde fossem realizados os ofícios[49].
A amostragem dos registros de óbito das quatro freguesias aqui
consideradas permite identificar a dinâmica pela qual o ritual da encomendação
de cadáveres era adotado na Corte. Visando melhor identificar as inflexões dos
índices conforme a implementação dos dispositivos sanitários durante a febre
amarela (alguns dos quais já foram mencionados anteriormente e outros aos quais
ainda vou abordar mais adiante), dividi os dados nos três grandes períodos
mencionados: antes da epidemia (01/11/1848 a 30/11/1849), durante a sua
ocorrência (01/12/1849 a 31/08/1850) e depois do surto (01/09/1850 a
31/12/1851), para analisar de que modo a febre amarela impactou a realização
das exéquias. Em seguida, desmembrei os dados referentes ao período de
ocorrência da epidemia em seis colunas conforme as datas dos dispositivos sanitários.
Para não confundir a leitura das tabelas, colori estas colunas em cinza e as
posicionei antes da coluna com o total de registros deste momento durante o
surto, a fim de não as confundir com as colunas que reúnem os dados totais relativas
ao período de antes e depois do surto. Os seis momentos relacionados aos
dispositivos sanitários que foram apresentados nas colunas em cinza são: 1) de
1º de dezembro de 1849 até 14 de fevereiro de 1850 (antes da implementação do Aviso
Imperial de 14/02); 2) de 15 de fevereiro até 4 de março (após a publicação do Aviso
Imperial de 14/02); 3) de 4 até 16 de março (após a publicação do Regulamento
Sanitário de 4/03); 4) de 17 a 30 de março (após a Circular de 16/03 proibindo os
sepultamentos nas igrejas); 5) de 31 de março a 2 de abril (após a determinação
de construção de uma capela para encomendação de cadáveres no cemitério do
Catumbi); 6) de 3 de abril a 31 de agosto (após envio de Ofício imperial ao
Bispo do Rio de Janeiro determinando a não realização de encomendações nos
templos). A análise evolutiva dos índices gerais de encomendação durante o
surto nos permite identificar de que forma os diferentes dispositivos
sanitários impactaram a realização das exéquias[50].
Partindo da normatização eclesiástica estabelecida nas
constituições sinodais, a análise se centrou sobre o local de realização das
cerimônias e quem as conduzia, se o pároco ou outro sacerdote mediante sua
licença. Após morrer tendo recebido os últimos sacramentos[51]
no leito de morte, o fiel defunto deixava de pertencer à comunidade familiar,
passando em corpo e alma para o domínio da Igreja[52].
As exéquias representavam, pois, o momento em que se concretizava a apropriação
do morto pelo clero, tal qual afirma o texto sinodal ao não reputar a residência
como o local mais adequado à realização de um ritual eclesiástico por
excelência. Os dados da Tabela 1 confirmam essa tendência, no momento anterior
à epidemia, quando as encomendações feitas na casa do falecido não alcançavam
nem 5% dos casos. Enquanto as igrejas paroquiais representaram 31,2% dos locais
de encomendação e as filiais (compreendidas aqui como as de irmandades, ordens
terceiras ou conventos situados em cada freguesia) somaram 63,2% dos locais das
cerimônias antes da febre amarela, as casas abrigaram uma quantidade significativamente
inferior das exéquias (com 3,6%) e os cemitérios um índice menor ainda que as
residências (com 0,7%)[53].
TABELA 1: Local
da encomendação dos cadáveres antes, durante e depois da epidemia
Local |
Antes |
Durante (até 14/2) |
Durante (até 4/3) |
Durante (até 16/3) |
Durante (até 30/3) |
Durante (até 2/4) |
Durante (até 31/8) |
Total Durante |
Depois |
TOTAL GERAL |
Igreja paroquial |
575 (31,2%) |
140 (33,2%) |
50 (25,4%) |
32 (15,7%) |
14 (5,5%) |
- |
- |
236 (12,8%) |
1 (0,1%) |
812 |
Igrejas filiais |
1162 (63,2%) |
252 (60,0%) |
135 (68,5%) |
146 (71,6%) |
43 (16,8%) |
1 (2,0%) |
6 (0,8%) |
583 (31,6%) |
3 (0,2%) |
1748 |
Casa |
66 (3,6%) |
12 (2,8%) |
5 (2,5%) |
1 (0,5%) |
44 (17,2%) |
13 (26,5%) |
179 (25,0%) |
254 (13,8%) |
283 (21,7%) |
603 |
Casa e igreja |
2 (0,1%) |
1 (0,2%) |
- |
- |
1 (0,4%) |
- |
- |
2 (0,1%) |
- |
4 |
Cemitério |
13 (0,7%) |
7 (1,7%) |
2 (1,0%) |
5 (2,5%) |
72 (28,1%) |
15 (30,6%) |
300 (41,8%) |
401 (21,7%) |
634 (48,5%) |
1048 |
Sem referência |
22 (1,2%) |
9 (2,1%) |
5 (2,5%) |
20 (9,8%) |
82 (32,0%) |
20 (40,8%) |
233 (32,4%) |
369 (20,0%) |
385 (29,5%) |
776 |
TOTAL |
1840 |
421 |
197 |
204 |
256 |
49 |
718 |
1845 |
1306 |
4991 |
Comparativamente ao período antes da febre amarela, os
índices de encomendação em casa e no cemitério apresentaram crescimento
substantivo durante e depois a epidemia, passando de 13,8% para 21,7% nas casas
e de 21,7% para 48,5% nos cemitérios; ao mesmo tempo em que houve intensa redução
dos templos como lugar de realização dos rituais: de 12,8% para 0,1% nas
igrejas paroquiais e de 31,6% para 0,2% nas filiais. Se observarmos as seis
colunas em cinza que apresentam os índices conforme o avançar do surto epidêmico,
constatamos que esta inversão não ocorreu logo no primeiro momento em que o
governo imperial publicou o Aviso de 14 de fevereiro. Muito pelo contrário, só
começou a ocorreu cerca de um mês depois, quando da publicação da Circular de
16 de março, evidenciando certa resistência da população – ou do clero? – em
deixar de realizar as exéquias nas igrejas. Se alguma alteração houve até este
momento, foi circunscrita a uma leve tendência de deslocamento das cerimônias feitas
nas igrejas paroquiais para as igrejas de irmandades, ordem terceiras e
conventos. É possível que a diminuição das encomendações nas igrejas paroquiais
a partir de 14 de fevereiro tenha se relacionado com os dois primeiros
dispositivos no que se refere às restrições aos múltiplos enterramentos numa só
igreja. A explicação para tal é que as sepulturas das igrejas matrizes tendiam
a concentrar cadáveres de um público superior ao das suas igrejas filiais.
Enquanto estas últimas eram majoritariamente buscadas pelos irmãos, as famílias
dos mortos não filiados a irmandades religiosas ou ordens terceiras ou cujas
associações não tinham templo próprio, tendiam a sepultar seus defuntos nas
igrejas paroquiais[54].
Ao que parece, os párocos preferiram conceder mais licença autorizando
encomendação por outro sacerdote em outro templo – ou eles mesmos para lá se
dirigirem para realizar os ofícios – do que realizar as cerimônias nas casas
dos falecidos.
A análise da Tabela 1 demonstra também que, juntamente com
as casas, os cemitérios despontaram como locais de realização das exéquias
apenas após a emissão da Circular de 16 de março. O que faz todo sentido para
quem analisa hoje, uma vez que se tornaram doravante o local de sepultamento dos
falecidos na cidade. O que não faz muito sentido, entretanto, é que somente a
partir deste momento tenha se dado o crescimento das encomendações nas casas e
não imediatamente após 14 de fevereiro. O tempo de pouco mais de um mês entre esta
data e a da Circular representa muito num contexto de intensificação da contaminação
e das mortes e nos leva a questionar os motivos da demora em cumprir os
dispositivos governamentais que determinavam o deslocamento das encomendações das
igrejas para as residências. Minha hipótese é que as cerimônias de encomendação
estiveram até então fortemente atreladas ao local de realização dos
sepultamentos. Considerando que se tratava de um ritual que antecedia o
sepultamento propriamente dito, foi mais fácil as encomendações se deslocarem
das igrejas para os cemitérios do que daquelas para as casas. Deste modo,
enquanto as inumações ocorriam nas igrejas e os cadáveres deviam ser deslocados
da casa para a sepultura nos templos, as encomendações continuaram a ser ali
realizadas. A partir do momento em que os sepultamentos não puderam mais ser realizados
nas igrejas, deslocando-se para os cemitérios, e os falecidos saiam de casa
diretamente para os cemitérios, as encomendações passaram a ser majoritariamente
feitas neste novo local de sepultamento. Ou seja, enquanto os sepultamentos não
deixaram as igrejas, os ofícios de encomendação seriam ali realizados,
independente das ordens governamentais.
Este argumento nos permite compreender o aumento das
encomendações nas casas e sobretudo nos cemitérios a partir de 16 de março, mas
ainda deixa dúvidas sobre os motivos da intensificação da realização das
cerimônias nos cemitérios a partir de fins de março. O fato que explica essa inversão
de posições entre as casas e os cemitérios foi a adoção de novo dispositivo
sanitário, em 30 de março, retirando das casas a exclusividade do local de
realização das encomendações ao determinar a construção de capelas no cemitério
para a realização destas cerimônias. Foi neste sentido que o Chefe de Polícia
da Corte, enviou ofício à Ordem Terceira de São Francisco de Paula determinando
que no prazo de seis dias a instituição construísse “com decência e muito
ligeiramente” uma capela provisória no cemitério do Catumbi para que as
encomendações de cadáveres fossem nelas realizadas[55].
O aspecto interessante deste processo é que, consciente ou inconsciente da
parte das autoridades imperiais, a construção de uma capela nos novos espaços
de sepultamento seria uma forma de reunir novamente as exéquias e as sepulturas
num mesmo local e, agora sim, ter mais condições de vencer a resistência da
população – e/ou do clero? - em separar as duas partes dos funerais católicos
como havia sido determinado no primeiro dispositivo sanitário, de 14 de
fevereiro.
Ao que parece, a capela cemiterial provisória foi construída;
o que pode ser explicado pelo aumento do índice de encomendações em cemitérios,
inclusive suplantando a quantidade das encomendações realizadas nas casas,
tanto após 30 de março de 1850 como mais intensamente após 2 de abril. Um
aspecto importante neste processo é que o aumento das referências às
encomendações nos cemitérios, em contraposição às feitas nas casas, foi acompanhado
do igual crescimento do índice de ausência de referência ao local das
encomendações nos registros paroquiais. Se num primeiro momento isto me levou a
ter dúvidas de interpretação sobre as tendências dos dados, por não ver explicitado
no assentamento paroquial o efetivo local de realização dos rituais, por outro
é possível perceber que se tratou de caso pontual de escrita vaga do texto do
registro de óbito. Em vez de o pároco ou seu coadjutor escrever a expressão
“foi encomendado/a e sepultado/a no cemitério da Misericórdia/do Catumbi” ou
“foi encomendado/a de licença no cemitério da Ordem Terceira de Catumbi”, a
anotação destes registros apresenta a expressão “foi encomendado e jaz
sepultado no Campo Santo do Caju" ou “foi encomendado por mim e jaz
sepultado no cemitério do Catumbi/da Ordem Terceira de São Francisco de Paula”.
Uma análise mais atenta demonstrou que a maioria dos 776 assentamentos de
cadáveres encomendados cujo registro não precisa o local da encomendação se
refere ao período posterior à epidemia, como se verifica na última linha da
Tabela 1. Mais do que isso, são posteriores à emissão da Circular de 16 de
março. O que me leva a cogitar que se referem a encomendações realizadas em cemitérios,
após o fim dos enterramentos nas igrejas, mas que por algum motivo os párocos e
seus coadjutores não especificaram o local da encomendação com maior precisão no
livro paroquial.
Se somarmos
os índices de ausência de referência à encomendação ao quantitativo das
encomendações no cemitério após 16 de março, verificamos um aumento exponencial
das exéquias em cemitérios nas três últimas colunas dos recortes temporais
referentes ao período durante a epidemia, fazendo os índices saltarem de 12,3% (até
16/3) para 60,1% (até 30/4), 71,4% (até 2/4) e 74,2% (até 31/8). Índices que
aumentariam para 78,0% após o fim da epidemia. Ao direcionar o olhar para as
freguesias, constatamos no Quadro 2 a concentração dos índices de ausência de
referências nas freguesias de Santa Rita e São José. Ao mesmo tempo, são destas
a maior parte dos textos vagos do assentamento paroquial no que diz respeito ao
local de realização da encomendação nestas duas freguesias. O que me levou a
interpretar esta ausência como omissão dos respectivos sacerdotes que anotavam
os assentamentos e a cogitar um efetivo crescimento das encomendações nos
cemitérios tanto durante como depois da febre amarela.
Quadro 2: Quantidade
de ausência de referência ao local da encomendação de cadáveres por freguesia
antes, durante e depois da epidemia
Freguesia |
Antes |
Durante (até 14/2) |
Durante (até 4/3) |
Durante (até 16/3) |
Durante (até 30/3) |
Durante (até 2/4) |
Durante (até 31/8) |
Total Durante |
Depois |
Total Geral |
Santana |
6 |
1 |
1 |
3 |
5 |
10 |
22 |
39 |
||
Candelária |
1 |
1 |
1 |
6 |
1 |
9 |
18 |
36 |
55 |
|
Santa Rita |
6 |
3 |
1 |
12 |
56 |
15 |
86 |
173 |
22 |
201 |
São José |
9 |
5 |
2 |
4 |
17 |
4 |
133 |
165 |
305 |
479 |
FONTE: Banco de Dados de Óbitos das
Freguesias do Rio de Janeiro
Reações
do clero da Corte à proibição das encomendações de cadáveres nas igrejas
O Ofício do Chefe de Polícia da Corte, contudo, foi apenas a
primeira de duas medidas governamentais impostas especificamente para restringir
a realização de ofícios de encomendação de cadáveres nas igrejas. A segunda medida
foi a tomada pelo Ministério do Império ao enviar um Aviso ao Bispo e
Capelão-mor do Rio de Janeiro, D. Manuel do Monte Rodrigues de Araújo, em 2 de
abril de 1850, solicitando que ele “expedisse as convenientes ordens” para que
as irmandades e ordens terceiras “cessassem o abuso” de levar os cadáveres para
encomendar nas igrejas e não em casa, como previsto no artigo 10 do Regulamento
Sanitário. Segundo o Visconde de Monte Alegre, as associações religiosas se
recusavam a cumprir a medida sob alegação de não terem recebido ordens de seu
diocesano e era mister que o Regulamento fosse religiosamente comprido[56].
Este dado confirma a ilação feita anteriormente sobre a resistência em se
cumprir os dois primeiros dispositivos sanitários. O que, de certa forma, é
corroborado pelos dados da Tabela 1 quando vemos que a maioria das cerimônias
ocorria nas igrejas das ordens terceiras e irmandades.
A resposta dada pelo bispo a este ofício demonstra o quanto
a implementação dos dispositivos sanitários pelo governo imperial afetaria as
relações entre Igreja e Estado, suscitando reações em defesa do direito
paroquial sobre uma das principais cerimônias na dinâmica de funcionamento das
paróquias, segundo o discurso clerical. Em sua resposta ao Ministro dos
Negócios do Império, o Bispo enviou um longo documento em 23 de abril por meio
do qual manifestou sua discordância para com o Aviso imperial recebido e, mais
ainda, em relação ao Regulamento Sanitário vigente há quase dois meses. Iniciou
sua contestação afirmando que o direito funerário compreendia tanto o lugar da
sepultura como as exéquias (entre as quais estavam as encomendações), sendo
ambas de “direito essencialmente paroquial”, assim como o da administração dos
sacramentos. Como tal, não via razão para que ao se separar o lugar dos
sepultamentos do local das exéquias, como feito por ocasião da febre amarela,
não se pudesse realizar as encomendações nas igrejas ou em suas catacumbas, uma
vez que os sepultamentos não se fizessem mais naquele espaço. Segundo ele, a
realização das encomendações nas paróquias, especialmente no caso das cerimônias
solenes para as quais se demandava o concurso de outros clérigos, propiciaria
aos párocos que os clérigos convidados para assistência dos ofícios de
encomendação os auxiliassem gratuitamente na realização de outros serviços
religiosos demandados pela paróquia. O que aliviaria a carga de trabalho tanto do
vigário como do seu coadjutor. Além do mais, isso solucionaria o problema da concentração de
encomendações solenes nas igrejas de confrarias e ordens terceiras, já
identificado pelo bispo, que beneficiava o alívio da carga de trabalho dos
capelães destas associações religiosas na obtenção de clérigos que lhes
auxiliassem gratuitamente no trabalho diário, deixando os párocos das igrejas
matrizes e seus coadjutores com todo o serviço paroquial, tendo em vista que o
número das encomendações solenes nas igrejas paroquiais era muito menor. Para o
prelado, esta situação ocasionava muitas vezes os embaraços enfrentados pelos
párocos para acudirem os fiéis “com todas as obrigações de seu ofício”, como ocorria
durante a epidemia de febre amarela, não permitindo nem que o pároco e seu
coadjutor ficassem doentes ou tivessem outro impedimento qualquer, devido ao
fato de não poderem contar com outros clérigos que lhes auxiliassem[57].
O Bispo acrescentou ainda que a realização das encomendações
nas igrejas não lhe parecia causar nenhum perigo para a saúde pública, decorrente
do acúmulo de cadáveres nos templos, porque as cerimônias poderiam ser
distribuídas pelas seis igrejas paroquiais da Corte[58],
diferentemente da sua concentração nas duas igrejas de Ordens Terceiras[59]
que acumularam encomendações de cadáveres num ou outro dia durante aquela
epidemia. Segundo ele, estas já tinham o costume de sepultar maior número de
pessoas mesmo antes da proibição de 16 de março e ainda continuavam a realizar
encomendações solenes. Diante disso, se ele tivesse que dar uma ordem sobre as
encomendações em sua diocese, conforme determinado pelo Ministro do Império,
esta deveria ser que as “encomendações d´alma”, privadas[60]
ou solenes, fossem feitas daquele momento em diante nas igrejas paroquiais para
onde os fiéis deveriam ser levados antes de serem destinados ao sepultamento em
qualquer dos cemitérios[61].
D. Manuel do Monte Araújo alegou sentir muito que a ideia
que propunha não fosse aquela do artigo 10 do Regulamento Sanitário, como
solicitado pela autoridade imperial, a qual ele não podia aprovar pela simples
razão de que as encomendações e outros ofícios pelas almas dos mortos eram atos
públicos da religião, tendo lugar próprio para sua celebração. Neste momento, ele
faz uma afirmação que nos ajuda a compreender aquele reduzido índice (3,7%) de
encomendação em casa antes da epidemia, conforme visto na Tabela 1, ao dizer
que as encomendações feitas nas habitações dos fiéis defuntos se constituíam em
exceções ou casos pontuais, mas que o artigo 10 do Regulamento transformara em
regra geral. Para ele, não havia inconveniente em que nas encomendações
privadas os cadáveres fossem levados até a matriz para ali se lhe fazer a
encomendação, visto que sempre haveria de ser tirado da casa para percorrer um
longo trajeto pelas ruas da cidade até o “cemitério extramuros”. A
justificativa para este posicionamento era que, se em tempo ordinário já era difícil
que os párocos administrassem os sacramentos aos seus fregueses, pior ainda
naquele período epidêmico quando tinham que acumular o serviço de ir pelas
casas, muitas vezes distantes, para encomendar os mortos. Se, por um lado, estes
não podiam mais ser sepultados nas igrejas paroquiais, por outro não havia
razão para não serem nelas encomendados. Ao seu ver, a determinação de se fazer
as encomendações nas casas era impraticável e ele não sabia se era prática
adotada em algum outro lugar. Era impraticável pelos inconvenientes de se
celebrar encomendações nas residências, especialmente no caso das solenes, pois
a casa deveria oferecer comodidade para ser convenientemente armada e receber o
clero armado em procissão que saía da matriz até a casa do defunto para entoar
as orações pelos mortos. Considerando ainda a existência de convidados, não
seria “toda e qualquer casa” e “toda e qualquer família” ou pessoas da casa do
morto que poderiam querer “presenciar um espetáculo tão melancólico, os
derradeiros e sentidíssimos adeus do pai, do esposo, do filho, do parente ou do
amigo”. Já no sentido contrário, a condução dos mortos para as paróquias
pouparia “tamanha sensibilidade aos vivos”. Por todos estes inconvenientes ele
se via obrigado a responder ao Aviso ministerial com a ordem de que as
encomendações se fariam nas casas dos finados quando fosse cômodo,
principalmente se fossem solenes[62].
Além de não querer que as paróquias perdessem espaço para as igrejas filiais, o
bispo não desejava perdê-lo também para as residências como local de realização
de uma cerimônia considerada pela hierarquia católica como paroquial por
excelência, ainda que isso não viesse ocorrendo na prática, como os dados da
Tabela 1 evidenciaram. O tom da resposta de D. Manoel do Monte Araújo ao
ministro dos Negócios do Império, Visconde de Monte Alegre, demonstra que, ao
se dirigir à maior autoridade eclesiástica do bispado do Rio de Janeiro, o
governo imperial ultrapassava o terreno da dimensão sanitária e abria espaço de
interferência em assuntos da esfera de jurisdição paroquial.
Após a Independência e por todo o Império, as relações entre
Estado e Igreja católica foram regidas pelo Padroado Régio, afirmando o catolicismo
como religião de Estado, embora com crescente afirmação do regalismo imperial,
especialmente a partir do segundo Reinado. Se o início do Império Brasileiro e
o período regencial foram marcados por intensa participação política do clero
de tendência liberal – defensor de maior autonomia perante Roma[63]
-, seja no parlamento ou tomando parte de alguns dos movimentos revoltosos, o
fortalecimento do Estado imperial a partir do segundo reinado, especialmente no
contexto do pós 1842, com o chamado Regresso Conservador, se faria sentir no
âmbito eclesiástico por intermédio da adoção de medidas com vistas a favorecer
um clero disciplinado e distante das disputas partidárias. Esta tendência se
manifestaria na adoção de uma série de reformas por meio das quais a burocracia
civil passou a assumir atribuições e funções atribuídas ao poder espiritual, até
então dominadas pelos párocos – especialmente os serviços públicos de maior
penetração e controle social, tais como o sistema eleitoral, o registro de nascimentos,
casamentos e óbitos e o controle dos cemitérios por questões higiênicas –,
fazendo com que o Estado adquirisse progressiva autossuficiência burocrática e administrativa[64].
Paralelamente, fazendo uso das faculdades conferidas pelo
Padroado Régio e pelo regalismo, o governo imperial passou a nomear bispos de
tendência conservadora e ultramontana para as dioceses brasileiras, desde
inícios da década de 1840, a exemplo de D. Antônio Ferreira Viçoso, para Mariana;
D, Antônio Joaquim de Mello, para São Paulo, D. Romualdo Antônio de Seixas,
para Salvador; D. José Afonso de Morais Torres, no Pará; e D. Feliciano José Rodrigues de Araújo Prates, no Rio Grande do Sul. O paradoxo desta decisão é que tais prelados conduziriam
reformas em suas dioceses no sentido de priorizar assuntos eclesiásticos e
espirituais, marcando aproximação crescente com Roma, defendendo maior
autonomia da Igreja em relação ao Estado, chegando a desafiar o regalismo. A
Santa Sé, por sua vez, tentaria afirmar sua autoridade sobre a Igreja do Brasil,
especialmente em decorrência da instalação da Internunciatura no Rio de
Janeiro, após 1808, por ocasião da transmigração da corte portuguesa na
América. A presença de representantes do papado na cidade do Rio incentivaria o
movimento ultramontano, principalmente com o avançar do Segundo Reinado, quando
do pontificado de Pio IX[65].
A implementação dos dispositivos sanitários pelo governo
imperial com vistas a conter o surto de febre amarela na Corte se daria,
portanto, num momento em que os processos citados acima se cruzaram, marcando
certamente o início das tensões entre os poderes temporal e espiritual, em que
pese o regime de união entre Estado e Igreja. O Aviso do Ministério dos
Negócios do Império ao Bispo do Rio de Janeiro e a resposta dada por este
evidenciam um terreno de disputa episcopal pela jurisdição eclesiástica de
elementos centrais nos costumes fúnebres naquela sociedade na qual o
catolicismo era religião de Estado, mas sob um governo com traços cada vez mais
regalistas que, sob a bandeira do higienismo, afetaria áreas de domínio
eclesiástico.
Nos estudos sobre os primeiros bispados de tendência
ultramontana no Império brasileiro, o prelado do Rio de Janeiro, D. Manuel do
Monte Araújo, não costuma ser citado entre os bispos reformadores de caráter
conservador. Possivelmente, pela indefinição sobre sua posição, se regalista ou
ultramontano. Nomeado o nono bispo do Rio de Janeiro, em 1839, era capelão-mor
do Imperador D. Pedro II (assim como fora de D. Pedro I), sagrou o novo
Imperador em 1841, além de ter atuado como deputado da Assembleia Geral em três
legislaturas entre os anos de 1830 e 1840. Mas, ao mesmo tempo, ensinou
Teologia no Seminário Episcopal de Olinda por dezesseis anos. Dentre outras
atuações, publicou várias obras, como cartas pastorais de exortação à ortodoxia
e a Memória que publicou anonimamente, segundo Sacramento Blake, com o
sugestivo título de “Sobre o direito de primazia do soberano pontífice romano
quanto à confirmação e instituição canônica de todos os bispos, traduzida do
francês, em 1837. Dentre seus escritos, destacaram-se o “Compêndio de Theologia
Moral”, publicado em 1837 (com seis edições), e “Elementos de Direito
Ecclesiastico Pùblico e Particular”, publicado entre 1857 e 1859[66].
Este último, publicado quando já atuava como bispo, foi marcado pela
heterodoxia e pelo que Benedetta Albani e Anna Clara Martins denominaram de
“sincretismo”, ao mesclar uma combinação variada de autores que incluía os de
posições jurisdicionalistas – alguns dos quais simpatizantes do galicanismo e
do jansenismo em defesa do alargado alcance do poder civil em matéria
eclesiástica –, com outros de ideias ultramontanas. Aspecto que levou esta sua
obra a ser condenada pela Congregação do Índice dos Livros Proibidos. Tal fato,
contudo, não impediu que ambas as obras alcançassem êxito não só nos seminários
e no meio clerical, mas também na formação dos bacharéis e no âmbito
burocrático imperial, ao serem utilizadas como referências citadas nas posições
do Conselho de Estado[67].
A combinação destas informações explique a caracterização de D. Manuel do Monte
Araújo como autor de uma escrita mais sóbria, descritiva, sem expressar
abertamente seu posicionamento pessoal. O que, segundo Albani e Martins, não
significaria neutralidade política, mas antes uma posição politicamente
equilibrada que o prelado “buscava guardar com o governo imperial e a Santa Sé,
entes munidos de diferentes (e mesmo contraditórios) interesses”[68].
Aspecto deste “equilíbrio” pode ser identificado na sua posição firme contra o
Regulamento Sanitário, em que pese sua posição de proximidade com o Imperador.
Afinal, o que esteva em jogo na determinação de que as encomendações de
cadáveres fossem feitas nas habitações era o fato de a medida ir de encontro ao
tradicional Direito Eclesiástico, tema presente em suas publicações.
Neste seu posicionamento, D. Manuel do Monte Araújo não
esteve sozinho. Sua autoridade entre os clérigos do Rio de Janeiro pode ser
evidenciada na repetição de elementos do seu combativo discurso frente ao
Ministro do Império por outros membros da hierarquia católica da Corte, a se
considerar alguns dos artigos publicados no periódico católico, A Religião[69],
ao longo do segundo semestre daquele ano de 1850, mesmo após a diminuição do
surto epidêmico.
O pároco da freguesia de Santana, Monsenhor Manuel Joaquim Miranda
Rego, um dos editores deste jornal e em 1/7/1850 publicou artigo por meio do
qual buscou comentar as questões que agitavam a corte naquele momento a
respeito dos funerais e criticar a crítica situação das paróquias da Corte
diante do fim dos enterros nas igrejas. Para ancorar seu discurso, usou o
exemplo das paróquias de Paris que, mesmo com o estabelecimento de um novo
cemitério central e extramuros – o Père-Lachaise – não foram prejudicadas
financeiramente. Segundo Miranda Rego, os decretos de Napoleão de 1804 que atribuíram
às fábricas das paróquias de Paris uma lei geral uniformizaram seus ganhos por
meio da exclusividade da oferta de objetos ligados ao serviço funerário, seguindo
o Direito Canônico e conferindo rendimento às paróquias. Diferentemente desta,
seria a situação confusa na qual se encontravam, ao seu ver, as paróquias no
Rio de Janeiro, uma vez que não possuíam uniformidade de funcionamento nem de rendimentos
e com o fim dos sepultamentos viam suas fábricas ameaçadas de não terem nem
como pagar os sineiros, muito menos como manter a dignidade e a nobreza do
culto católico. Afinal, afirmou ele, a paróquia deveria ser as escolas normais
do culto católico na sua mais rigorosa instituição canônica[70].
Um destaque a ser feito é que o Monsenhor Miranda Rego era o
pároco que atuava em uma das freguesias cujos registros de óbito foram aqui analisados
e a computação dos dados sinaliza para uma clara diferenciação no modo como ele
procurou manter os ofícios de encomendação sob estrito controle paroquial,
diferentemente das outras três freguesias. O Quadro 3 demonstra que Santana foi
a única freguesia na qual as cerimônias de encomendação realizadas na igreja
matriz não eram tão inferiores em quantidade às feitas em templos de
associações religiosas filiais à paróquia, tanto antes como durante e depois da
epidemia de febre amarela.
Quadro 3: Quantidade
de encomendação por tipo de igreja (paroquial e filial) conforme a freguesia,
antes, durante e depois da febre amarela
Freguesia |
Tipo de Igreja |
Antes |
Durante (até 14/2) |
Durante (até 4/3) |
Durante (até 16/3) |
Durante (até 30/3) |
Durante (até 2/4) |
Durante (até 31/8) |
Total Durante |
Depois |
Total Geral |
Santana |
Paroquial |
345 |
81 |
19 |
20 |
6 |
- |
- |
126 |
1 |
472 |
Santana |
Filiais |
348 |
60 |
29 |
36 |
7 |
- |
- |
132 |
2 |
482 |
Santa Rita |
Paroquial |
205 |
54 |
23 |
12 |
- |
- |
89 |
- |
294 |
|
Santa Rita |
Filiais |
270 |
58 |
30 |
31 |
8 |
- |
- |
127 |
- |
397 |
São Jose |
Paroquial |
13 |
2 |
6 |
- |
3 |
- |
- |
11 |
- |
24 |
São Jose |
Filiais |
386 |
94 |
66 |
58 |
8 |
1 |
1 |
228 |
1 |
615 |
Candelária |
Paroquial |
12 |
3 |
2 |
5 |
10 |
|
22 |
|||
Candelária |
Filiais |
158 |
40 |
10 |
21 |
20 |
5 |
96 |
|
254 |
FONTE: Banco de Dados de Óbitos das
Freguesias do Rio de Janeiro
Outra publicação contrariando as restrições sanitárias
quanto à realização das encomendações nas igrejas saiu na edição de 15/07/1850
do mesmo jornal. Desta vez, em artigo escrito pelo padre Joaquim Caetano
Fernandes Pinheiro sobre “os cemitérios”, por ocasião do início da discussão do
Senado acerca da lei de criação dos definitivos cemitérios públicos extramuros
na Corte[71]. Iniciando
pela diferenciação entre exéquias e sepultura, seu texto repetia a maior parte dos
argumentos enunciados na resposta do bispo ao Ministro do Império, ao defender
o argumento da natureza paroquial das encomendações e questionar o artigo 10 do
Regulamento Sanitário[72].
Duas semanas depois, o pároco de Santana retornou ao embate,
publicando um artigo em 1/8/1850, no qual insistiu na diferença entre exéquias
e sepultura, mas agora para se contrapor à determinação governamental de
construção de capelas em cemitérios e em defesa do retorno das encomendações às
igrejas paroquiais. Mobilizando novamente o exemplo de Paris, argumentou que os
cemitérios extramuros lá criados em 1804 não possuíam capelas para realização
dos ofícios fúnebres, pois estes ainda eram realizados nas igrejas matrizes.
Segundo ele, até o último dia em que os enterros foram feitos nas igrejas do
Rio de Janeiro, nenhuma das ordens terceiras, convento ou irmandades da Corte
havia sepultado em suas catacumbas ou cemitérios sem que estes fossem primeiro
encomendados pelo respectivo pároco ou mediante sua licença. Nunca haviam feito
uma encomendação solene que não fosse realizada ou pelo pároco respectivo e
clero da matriz que dela saia processionalmente de cruz alçada ou com sua
licença[73].
Ao que parece, ele estava falando mais de sua paróquia. Esta
argumentação vai ao encontro dos dados citados no Quadro 3, que evidencia um
pároco bastante cioso dos direitos paroquiais e atuante na sua freguesia. Um
dos indícios desta afirmação é a sua iniciativa de dar visibilidade à igreja
que paroquiava por meio da deposição no templo da relíquia de uma santa que,
uma vez exposta, transformou a igreja de Sant’Anna em um concorrido altar na
cidade[74].
Talvez por esta característica, ele tenha se envolvido numa altercação com a Ordem
Terceira de São Francisco de Paula, dias depois da publicação deste artigo, a
respeito da capela que havia sido construída no cemitério do Catumbi no início
de abril. Considerando que o cemitério estava localizado em sua paróquia e que,
portanto, a capela estava sob sua jurisdição, Miranda Rego enviou uma
representação ao bispo, em 8 de agosto, argumentando que o vice-comissário da
ordem terceira estaria presidindo ofícios fúnebres solenes na capela cemiterial,
com o auxílio de clero convidado por ele, sem a assistência ou licença
paroquial de Miranda Rego. Na missiva, o monsenhor afirmou ao bispo que desde a
sua fundação o cemitério recebia os corpos provenientes de outras freguesias
sem recomendação nem licença do pároco de Santana, a quem pertencia o direito
de recomendação como pároco do distrito onde o cemitério se localizava,
“segundo o direito e praxe inalterável do Bispado do Rio de Janeiro”. Diante
disso, pedia que o bispo não vedasse o seu direito de presidir todos os ofícios
divinos e solenes que fossem celebrados na capela daquele cemitério, além de
ele mesmo poder convidar o clero para os ditos atos e, por fim, que nenhum
corpo proveniente de outra freguesia para ser ali sepultado pudesse ser
encaminhado ao cemitério com violação do direito de recomendação que pertencia
ao pároco único daquela capela; ou seja, ele mesmo[75].
Antes de responder ao pároco, o Bispo D. Manuel do Monte ouviu
o Pro-Comissário da Ordem Terceira de S. Francisco de Paula, Francisco Luiz
Fernandes Pinto, sobre os fatos relatados pelo monsenhor Miranda Rego. Em
resposta este informou que nem nas antigas catacumbas da igreja nem no atual
cemitério extramuros se recebera cadáveres para serem sepultados e tampouco os
sepultara e realizara encomendações sem licença dos respectivos párocos ou sem
se satisfazer a justiça devida às igrejas paroquiais. Contentando-se com esta
afirmação, o bispo se dirigiu ao pároco de Santana para reafirmar que a Ordem
Terceira de S. Francisco de Paula era isenta de jurisdição paroquial e sujeita
imediatamente à Diocese, com quem se conservava pacificamente há longos anos,
por privilégio adquirido em provisão episcopal de 1763, breve apostólico de
1779 e aviso régio de 1806. Entretanto, essa isenção não compreendia as
exéquias, que não poderiam ser feitas sem obtenção de licença paroquial. Por
fim, o prelado afirmou que, apesar de o cemitério e sua capela estarem na área
de jurisdição da paróquia de Santana, ambos deveriam usufruir das mesmas
condições de privilégio da respectiva ordem terceira, especialmente por terem
sido disponibilizados à população para fazer frente às demandas daquele
contexto epidêmico. Deste modo, o bispo compreendia que a ordem e o pró-comissário
não teriam excedido nos seus privilégios e não havia razão fundada na
representação de Miranda Rego[76].
Um dos motivos para a invectiva dos clérigos aqui citados
contra os dispositivos sanitários pode ser a queda brutal das encomendações nas
igrejas, especialmente após 30 de março, se considerarmos os dados das
freguesias aqui analisadas. Se entre as igrejas filiais, houve oscilação dos
índices nos seis diferentes momentos de adoção dos dispositivos sanitários
durante o surto (de 60,0% para 68,5%; 71,6%; 16,8%; 2,0% e 0,8%), a queda dos
índices de realização das encomendações de cadáveres nas igrejas paroquiais foi
progressiva, mas com ausência de total de encomendação já a partir de 30 de
março (33,2%; 25,4%; 15,7%; 5,5%, 0,0%e 0,0%). Efetivamente, as paróquias
perderam espaço para as casas e principalmente para os cemitérios enquanto
locais de realização das encomendações de cadáveres, após o momento em que as
autoridades imperiais determinaram a construção de capelas nos cemitérios
extramuros. Resta aprofundar o estudo sobre se os direitos paroquias teriam
sido resguardados, como preconizado na legislação eclesiástica. De qualquer forma,
exemplo de como até mesmo as igrejas das associações religiosas sentiram a
perda do seu templo religioso enquanto espaço de realização dos ofícios de
encomendação é que após o fim do surto, várias delas se dirigiam às autoridades
imperiais para solicitar autorização para encomendar em suas igrejas, entre
1851 e 1852, sendo todos os pedidos deferidos pelas autoridades imperiais[77].
Entretanto, com a criação e o início do funcionamento dos
dois cemitérios públicos extramuros da Corte – de São Francisco Xavier, no
Caju, em dezembro de 1851, e de São João Batista, na Lagoa, em dezembro de 1852
–, o assunto voltaria à discussão, pois ao serem administrados pela Santa Casa
da Misericórdia em sistema de monopólio, toda a dinâmica do serviço fúnebre na
cidade passou a ser regida por regulamentos únicos para ambos os cemitérios.
Tais documentos normativos definiam desde aspectos ligados à infraestrutura
daquelas necrópoles, à distribuição dos espaços e terrenos de sepultura, aos
diversos tipos de trabalhadores que ali atuariam, à normatização dos funerais,
dentre outros, inclusive o que dizia respeito às capelas e às encomendações de
cadáveres. Tanto o primeiro regulamento, de 14/06/1851, como o que o
substituiu, em 17/02/1855 e o posterior, de 03/08/1861, resguardaram o direito
paroquial ao afirmar que “a nenhum cadáver se fará encomendação de sepultura
nas capelas dos cemitérios públicos, sem certidão do respectivo pároco, de ter
sido por ele encomendado na casa do finado ou na igreja da freguesia”[78].
Embora o texto dos regulamentos mencione o resguardo do direito paroquial sobre
as encomendações e cite as casas e igrejas como locais nos quais elas poderiam
ocorrer sob a direção paroquial, é preciso ainda investigar a execução que
tanto a administração dos cemitérios públicos deu a esta medida, bem como a
frequência da prática da encomendação de cadáveres.
O que temos por enquanto é a constatação de que restrições
impostas pelas medidas sanitárias causaram alterações significativas no
tradicional ritual das exéquias ao colocarem definitivamente os cemitérios como
a referência não apenas do local de sepultamento, mas também como espaço
privilegiado de encomendação do cadáver. A questão que fica é sobre a dimensão quantitativa
dos paroquianos que continuariam levando seus falecidos à igreja para
realização dos ofícios de encomendação ou receberiam os párocos em sua casa. Ao
que parece, o problema criado pela epidemia só se acentuaria, a se considerar
as novas ações de párocos em defesa do direito de encomendação paroquial dos
cadáveres surgidas nos anos seguintes. Só que agora, a disputa seria contra a
Santa Casa da Misericórdia e seu monopólio sobre os cemitérios e o serviço
funerário na cidade[79],
em defesa de que a declaração paroquial de encomendação fosse efetivamente
exigida para que se desse sepultura nas novas necrópoles. Sob qual argumento? O
de que os paroquianos estariam deixando de ir às igrejas para realizar a
encomendação, dirigindo-se diretamente para os cemitérios. Seriam demandas decorrentes
dos costumes fúnebres nos novos tempos[80].
Mas costumes que se desenvolveram a partir da implementação dos dispositivos
sanitários e que contribuiriam para o processo de esvaziamento do papel da
paróquia e do pároco como figuras preponderantes dos rituais funerários.
Palavras
Finais
Escrever este artigo no contexto da
pandemia de COVID-19 me possibilitou analisar a relação entre epidemia e
transformação dos rituais funerários de uma perspectiva diferente da que fiz
anos atrás quando eu não estava imersa numa conjuntura com várias similitudes
em relação ao passado. A maior delas é poder perceber de forma bastante
concreta a desarticulação dos ritos funerários até então vigentes. Uma das
percepções mais evidentes do meu presente que invadiu as reflexões neste artigo
foi identificar a dimensão dos dispositivos sanitários e das restrições por
eles impostas aos costumes fúnebres do passado de uma forma que eu não tinha me
dado conta antes. Uma série de circunstâncias impõe dificuldades de se realizar
as práticas que cada sociedade, cultura e religião adota em épocas ditas normais.
O número desenfreado de mortes e o medo do contágio desestruturam
elementos/etapas dos rituais, dificultando a prestação dos cuidados aos
moribundos; abreviando ou restringindo as cerimônias de despedida; impondo
formas nem tão aceitáveis de se dar o destino aos numerosos cadáveres,
especialmente no caso das práticas de inumação; além do impacto sobre rituais
de luto... A tal ponto que chega um momento em que não conseguimos diferenciar
muito bem se determinada afirmação se refere ao século XIX ou ao XXI!
Mas, focando nosso olhar sobre o Oitocentos,
a análise aqui desenvolvida demonstrou o quanto os dispositivos sanitários implementados
diante da epidemia de febre amarela na cidade do Rio de Janeiro, a partir do
momento em que foi oficialmente reconhecida pelo governo imperial em fevereiro
de 1850, contribuíram indelevelmente para a transformação de significativos
elementos das atitudes católicas diante da morte vigentes no Império brasileiro,
algumas das quais remontavam aos primeiros momentos da instalação portuguesa na
América. Na linha da recorrente expressão presente nos discursos clericais aqui
analisados, podemos diferenciar o impacto da epidemia sobre as exéquias e as sepulturas.
No caso das sepulturas, embora os
dispositivos sanitários não tenham imposto a sua proibição de início, a
intensificação da epidemia com a ampliação do número de mortes confluiu para a
adoção de um dispositivo derradeiro para os costumes funerários da cidade. Ao
mesmo tempo que a Circular de 16 de março encerrou a secular prática de
sepultamento nas igrejas, foi o ponto de partida para a criação de cemitérios
extramuros para os quais os cadáveres de toda uma cidade seriam enviados. Ainda
durante o surto epidêmico, tratou-se de um cemitério público improvisado. Mas a
medida foi apenas o primeiro ato que antecedeu a implantação definitiva de
cemitérios públicos extramuros menos de dois anos depois. As novas necrópoles
criadas na Corte abririam um leque de possibilidades para novas formas e regras
de gestão dos sepultamentos e do local das sepulturas, de cortejo fúnebre, de funerais,
adorno das sepulturas, novo tipo de comércio com o advento dos marmoristas; venda
de objetos fúnebres, desenvolvimento do culto familiar aos mortos, a nova frequência
com que se visitava os entes queridos falecidos num lugar mais distante, desenvolvimento
de nova dinâmica no Dia de Finados, dentre outras inovações.
No caso das exéquias, diferentemente
das sepulturas, pudemos identificar as dificuldades que as autoridades
governamentais tiveram para direcionar os rituais de encomendação das igrejas
para as casas, desde a implantação do primeiro dispositivo sanitário em 14 de
Fevereiro. Enquanto foi possível, as paróquias, irmandades, conventos e ordens
terceiras se mantiveram resistentes em continuar a realizar as encomendações
nos templos sob argumento de que as casas não eram o espaço adequado para uma
cerimônia sagrada e clerical. Mesmo após a edição dos primeiros dispositivos
sanitários, os rituais continuaram a ser realizados nas igrejas antes de se dar
sepultura aos cadáveres que adentravam o templo. Esta situação foi possível até
o momento em que os sepultamentos nas igrejas foram proibidos e foi necessário
deslocar os mortos para os cemitérios extramuros de caráter provisório. Ainda
assim, foi preciso que as autoridades imperiais percebessem a necessidade de
criar um espaço que igualasse os templos dentro dos cemitérios, determinando a
construção de uma capela no cemitério que mais dava sepultura na cidade.
O fim
dos sepultamentos nas igrejas foi determinante para que as encomendações fossem
efetivamente deslocadas para as residências dos fiéis, num primeiro momento, e
para os cemitérios, em seguida. Mas ao mesmo tempo que possibilitou a concentração
dos sepultamentos em apenas dois cemitérios afastados das dezenas de igrejas
nas ruas centrais, a Circular de 16 de março evidenciou uma certa tendência de
as encomendações acompanharem o lugar de sepultamento. Neste sentido, quando as
inumações se concentraram nos cemitérios, estes passaram a ser os espaços nos
quais se realizaram a maior quantidade das cerimônias de encomendação das
semanas finais do período de vigência da epidemia até depois do surto. É deste modo que a epidemia de febre amarela, ao proibir a
realização das encomendações nas igrejas, seria um primeiro passo para novas alterações
nos costumes fúnebres católicos.
A resistência clerical em deslocar os
rituais de encomendação para as casas se justificava com base no argumento de
que elas eram não eram o espaço sagrado que suportavam as cerimônias públicas
das exéquias, como definidas na legislação eclesiástica. As razões enunciadas por
uma parte do clero do Rio de Janeiro para não cumprir os dispositivos
sanitários logo de início tinham como fundamento o direito canônico que definia
os ofícios de encomendação como de jurisdição paroquial. Mas também se
fundamentavam na necessidade de se utilizar da presença dos acólitos que faziam
a assistência ao pároco nos ofícios solenes como forma de obtenção de auxílio
para a execução do serviço paroquial, especialmente no contexto epidêmico. O
argumento utilizado nos textos dos sacerdotes era que a realização das
encomendações nas casas dos falecidos ampliaria e dificultaria o cumprimento do
serviço paroquial, por exigir o deslocamento dos párocos e/ou seus coadjutores
para as casas dos fiéis defuntos. Considerando que não eram todas as casas
preparadas para tal cerimônia, especialmente no caso das encomendações solenes,
e que não viam risco em que as famílias parassem na igreja antes de levar seus
defuntos ao cemitério, os textos clericais defendiam o cancelamento dos
dispositivos que determinavam que as encomendações fossem realizadas nas casas.
A análise dos registros paroquiais demonstra que esse desejo não se realizou. Nos
posicionamentos do bispo do Rio de Janeiro e de outros membros da hierarquia
eclesiástica católica, foi perceptível a reação ao avanço do governo imperial
sobre assuntos considerados da esfera da jurisdição eclesiástica, em nome da
política higienista. Não acredito que estes já representariam elementos de uma
política conscientemente laicista, mas tão somente parte de ações de caráter
regalista no sentido do desenvolvimento da burocracia civil mencionado
anteriormente, especialmente no contexto de construção da ordem imperial que
ainda demandava o consórcio com a Igreja[81].
O que não nos impede de identificar nestas ações elementos significativos que
contribuíram para o desenvolvimento do processo de enfrentamento e disputas
muito mais explícitas e incisivas entre regalismo e ultramontanismo, cujo
desdobramento será a chamada Questão Religiosa, na década de 1870, na qual
também podem ser incluídas as disputas por jurisdição sobre cemitérios e
enterramentos, como analisei em outro trabalho[82].
Os indícios
documentais que se tem para o período posterior sinalizam para novos
pronunciamentos clericais reclamando o quanto teriam perdido o controle paroquial
das encomendações desde o início do funcionamento dos cemitérios públicos
extramuros com seus regulamentos. Uma investigação mais detida sobre como se deu
este último processo é um tema aberto em busca de futuras análises que poderão
comprovar se as alterações aqui evidenciadas nos dados paroquiais seriam
duradouras e se as restrições sobre as encomendações durante a epidemia de
febre amarela teriam efetivamente representado o marco do delicado processo de esvaziamento do papel da
paróquia nos rituais funerários católicos na Corte imperial.
[1]
Rodrigues, Claudia (1997), Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições
e transformações fúnebres na Corte, Secretaria Municipal de Cultura/Divisão
de Editoração (Coleção Biblioteca Carioca), Rio de Janeiro, e Rodrigues, Claudia (2014), “A criação dos cemitérios
públicos do Rio de Janeiro enquanto ‘campos santos’ (1798-1851)”, Revista do
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, vol. 8, pp. 257-278.
[2]
As oito freguesias eram: Santíssimo Sacramento da Antiga Sé, São José,
Candelária, Santa Rita, Santana, Engenho Velho, Glória e Lagoa. A etapa de
coleta das fontes para realização deste trabalho foi realizada durante o
período de maior intensidade da COVID-19. Diante do fechamento dos arquivos
devido ao isolamento social, recorremos às imagens dos livros paroquiais de
óbito pertencentes ao Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro que se
encontram digitalizadas e disponíveis no site do Family Search (https://www.familysearch.org/pt/).
A intenção inicial era incluir a freguesia do Santíssimo Sacramento da Antiga
Sé na amostragem, mas não foi possível por dois erros da organização das
imagens no acervo digital: o livro da freguesia de Santa Rita relativo aos anos
de 1842 a 1851 aparece no lugar do livro de óbitos da freguesia do Santíssimo
Sacramento e o livro do Santíssimo Sacramento correspondente ao intervalo de
1848 a 1853 não consta entre os registros de 1843 a 1861. A necessidade de
continuar a pesquisa nos levou a seguir sem contar com aquela que era a
freguesia mais populosa da Corte. A coleta dos assentos paroquiais foi feita
com o inestimável auxílio de meus orientandos da Iniciação Científica do Curso
de Graduação em História da UNIRIO (Maria Luiza Pereira da Silva, Felipe Leal
Spinelli, Vitória Dias Fernandes e Fernando Brito) e meu orientando de mestrado
Laércio de Araújo Sousa Júnior, aos quais agradeço imensamente.
[3]
Para aprofundamento dos aspectos históricos, econômicos e sociais destas
freguesias, ver alguns dos estudos já clássicos sobre a cidade, que devem ser
complementados por diversas teses e dissertações de mestrado com enfoques mais
atualizados, cuja maioria já se encontra disponível on-line: Lobo, Eulália
Maria Lahmeyer (1978), História do Rio de Janeiro: do capital comercial
ao capital industrial e financeiro, Rio de Janeiro, IBMEC, 2 vols.; Abreu, Maurício (1997), Evolução urbana do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, IPLANRIO; Fridman, Fânia (1999), Donos do Rio
em nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar/Garamond; Karasch, Mary (2000), A vida dos escravos no
Rio de Janeiro: 1808-1850, São Paulo, Companhia das Letras; Enders, Armelle
(2002), História do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Gryphus; Schultz,
Kirsten (2008), Versalles tropical: império, monarquia e Corte real
português no Rio de Janeiro, 1808-1821, Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira.
[4] Avé-Lallemant,
Robert (1851), Observações acerca da
epidemia de febre amarela no ano de 1850 no Rio de Janeiro: colhidas nos
hospitais e na policlínica, Rio de Janeiro, Typ. de J. Villeneuve &
Comp., p. 9.
[5] Franco, Odair (1969), História da febre amarela no
Brasil, Rio de Janeiro, Ministério da Saúde, Departamento Nacional de
Endemias Rurais, Rio de Janeiro/GB, pp. 25-35; Benchimol, Jaime Lary (2001), Febre
amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada [online], Rio de
Janeiro, Editora FIOCRUZ; Dellamarque, Elizabete Vianna (2011), Junta
Central de Higiene Pública: vigilância e polícia sanitária (antecedentes e
principais debates), Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em
História das Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz – FIOCRUZ, pp. 49-50.
[6]
Rodrigues, Claudia (1999), Lugares dos mortos e “A cidade e a morte: a
febre amarela e seu impacto sobre os costumes fúnebres no Rio de Janeiro
(1849-50)”, Hist. Cienc. Saude-Manguinhos [online], vol. 6, n. 1, pp.
53-80. https://doi.org/10.1590/S0104-59701999000200003.
[7] Em relação ao quase monopólio dos médicos da Academia
Imperial de Medicina sobre o discurso médico na década de 1850 e seu papel
central nos debates e na formulação das políticas públicas de saúde no Império,
ver Santos, Júlio Cesar Paixão (2017), A
circulação das ideias de estatística no Segundo Reinado: periodismo, discurso
científico e ciências biomédicas no Rio de Janeiro (c. 1840-c.1872), Tese
de Doutorado, Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde,
Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, p.
222 e Edler, Flávio (2011), A Medicina no Brasil Imperial: clima, parasitas
e patologia tropical, Rio de Janeiro, Fiocruz, pp. 155-159. Tal domínio do
discurso acadêmico-científico de médicos alopáticos da Academia Imperial de
Medicina não significa, porém, seu monopólio nas práticas de cura, uma vez que
as chamadas terapêuticas populares, incluindo a homeopatia, as benzeduras e
outras práticas de cura constituíam a maioria das ações frente às doenças,
sendo amplamente aceitas e requisitadas pela população. A este respeito, ver Pimenta, Tânia Salgado, “Transformações no exercício
das artes de curar no Rio de Janeiro durante a primeira metade do Oitocentos”, História,
Ciências, Saúde-Manguinhos [online], 2004, vol. 11, suppl 1, p. 68
[Acessado 15 Abril 2022], pp. 67-92. Disponível em:
<https://doi.org/10.1590/S0104-59702004000400004>.
[8]
“Aviso de 14 de Fevereiro de 1850”, Manda observar as providências organizadas
para prevenir, e atalhar o progresso da febre amarela. In: Colecção das
Decisões do Governo do Império do Brasil, “Aditamento ao Caderno 2º” (1851),
Tomo XIII, Typographia Nacional, Rio de Janeiro, pp. 260-264.
[9]
O artigo não estipulava o tempo das exumações. Mas se considerarmos as posturas
da cidade do Rio de Janeiro, promulgadas em 1830, é muito provável que não
fosse inferior a dois anos, haja visto que o §2º da primeira seção do Título
“Sobre cemitérios e enterros”, proibia a abertura de sepultura já ocupada por
outro cadáver antes de dois anos, no caso das catacumbas, e antes de três anos,
no caso das covas. Cf. Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Posturas
da Camara Municipal do Rio de Janeiro 1830, Typographia Imperial e
Nacional, Rio de Janeiro, 1830. Em outro documento podemos constatar uma
crítica ao “prejudicial costume” de sepultamento no interior ou no entorno das
igrejas não apenas pelo “prejuízo” que causavam à saúde pública por serem as
sepulturas “um pouco rasas”, mas também pela prática de se fazer exumações no
intervalo de 8 a 12 meses, “tempo insuficiente para a consumição dos corpos”.
Cf. Monteiro, José Chrysostomo (1873), Notícia
histórica da fundação do cemitério da venerável Ordem Terceira dos Mínimos de
são Francisco, em Catumbi Grande, Rio de Janeiro, Typ. do Apóstolo, p. 5.
[10]
Aviso de 14 de Fevereiro de 1850, Ob. Cit., p. 263-264.
[11]
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (AGCRJ). Portaria do Ministro do Império, Visconde de Monte Alegre, remetendo à
Câmara as instruções para prevenir e atalhar o progresso da febre amarela. Rio de Janeiro, 14/02/1850 In: Moraes
Filho, Mello (comp.) (1894), Código de Posturas, leis, decretos, editais e
resoluções da Intendência Municipal no Distrito Federal. Compilação feita por
ordem da Prefeitura, pela repartição do Arquivo Geral, Rio de Janeiro, Papelaria
e Typographia Mont’Alverne, p. 80. Disponível em:
file:///C:/Users/Dell/Downloads/000111259.pdf Acesso em 15 de março de 2022.
Ver cópia manuscrita deste documento disponibilizada no site do Arquivo do
Senado. Documentos digitalizados do Império sobre Cólera, febre amarela,
hanseníase e varíola. Disponível em:
https://www12.senado.leg.br/institucional/arquivo/documentos-do-imperio/05-postura-sobre-febre-amarela-de-19_02_1850.
Acesso em 12/04/2022.
[12]
A proibição dos dobres de sinos era parte da vigilância auditiva proposta por
médicos higienistas sob o argumento de que o som lúgubre, especialmente diante
de tantas mortes, afetava emocionalmente os moribundos ao trazer à sua mente a
insistente imagem da morte. Cf. Reis, João José (1991), A morte é uma festa:
ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX, São Paulo,
Companhia das Letras, p. 263-266; Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit., p.
66-89.
[13]
Exemplos desta legislação são a Portaria de 15/11/1825 emitida por D. Pedro I
deliberando aos párocos da cidade o cumprimento da Carta Régia de 14/01/1801
que, em vão, determinara o fim da tradicional prática de inumação nos templos e
a Lei de 1º de outubro de 1828 que reestruturou as atribuições das câmaras
municipais de todo o império e estendeu a Portaria de 1825 destinada ao Rio de
Janeiro para todo o país, conferindo às municipalidades o estabelecimento de
cemitérios fora do recinto dos templos. Cf. Reis, João José, 1991. Ob. Cit.,
pp. 274-276; Rodrigues, Claudia, 2014, Ob.
Cit., pp. 259-263; Rodrigues, Claudia, “Morte e rituais de
enterramento”. In: Oliveira, Cecília Helena de Salles e Pimenta, João Paulo
(orgs.) (2022), Dicionário da Independência: História, memória e
historiografia, São Paulo/Lisboa, Biblioteca Brasiliana Guita e José
Mindlin/Instituto Camões (no prelo).
[14]
BN/RJ, Hemeroteca Digital, Diario do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 14
de Fevereiro de 1850, p. 1. Disponível em:
http://memoria.bn.br/pdf/094170/per094170_1850_08327.pdf Acessado em 1/4/2022.
[15]
Feital, José Maria de Noronha (1850), Memória
sobre as medidas conducentes a prevenir e atalhar o progresso da febre amarela,
Rio de Janeiro, Typ. do Brasil, p. 17.
[16]
Franco, Odair, 1969, Ob. Cit., p. 38. Aviso de 4 de Março de 1850. Manda
executar o Regulamento sanitário organizado para as Comissões Paroquiais de
Saúde Pública, criadas por Aviso de 14 de Fevereiro deste ano. In: Colecção das
Decisões do Governo do Império do Brasil, “Additamento ao Caderno 3º”, Tomo
XIII, 1850, Rio de Janeiro, Typographia Nacional, pp. 266-272. Muito embora a
doença também tenha se alastrado pelas demais freguesias, consideradas rurais,
as medidas tomadas pelas autoridades imperiais concentraram-se nas paróquias
centrais mais próximas ao porto. Para exemplo da divulgação deste regulamento
nos jornais da Corte, ver BN/RJ. Hemeroteca Digital. Diario do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro, ed. 8344, 6 de Março de 1850, p. 1. Disponível em:
http://memoria.bn.br/pdf/094170/per094170_1850_08344.pdf Acessado em 23/03/2022.
[17] Benchimol, Jaime Lary, 2001, Ob. Cit., p.114.
[18]
Destaco no artigo 22 a determinação de que qualquer publicação de temas
relativos à saúde pública na imprensa deveria ser revista e aprovada pela
Comissão Central de Saúde Pública. O que pode explicar o desaparecimento dos
obituários dos jornais no contexto epidêmico
[19]
Aviso de 4 de Março de 1850, Ob. Cit., p. 268.
[20]
Sobre a disseminação das concepções médicas acerca dos miasmas, especialmente
no que tange às emanações cadavéricas, na primeira metade do século XIX, ver
Reis, João José, 1991, Ob. Cit., pp. 252-262; Rodrigues, Claudia, 1997, Ob.
Cit., pp. 59-66; Araújo, Ana Cristina (2020), “Vicente Coelho de Seabra
Silva Teles e a reforma dos cemitérios”, Revista M. Estudos sobre a morte,
os mortos e o morrer, vol. 4, nº 8, pp. 229–243. https://doi.org/10.9789/2525-3050.2019.v4i8.229-243.
Acesso em 29 de abril de 2022.
[21]
Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit., p. 62; Rodrigues, Cláudia, 1999, Ob.
Cit., pp. 61-62.
[22]
Sobre a prática dos armadores de velórios, ver Bruno, Aguiomar Rodrigues
(2020), A morte como negócio: os mercadores fúnebres no interior fluminense
(Piraí, século XIX), Tese (Programa de Pós-graduação em
História/PPGH-UNIRIO), Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO.
[23]
Feital, José Maria de Noronha, 1850, Ob. Cit.; Rodrigues,
Claudia, 1997, Ob. Cit., pp. 60-61.
[24]
Sobre a vigilância olfativa e auditiva preconizada por médicos sanitaristas,
como o Dr. Feital, ver Reis, João José, 1991, Ob. Cit., pp. 252-262;
Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit., pp. 59-66; Araújo,
Ana Cristina, 2020, Ob. Cit.,
p. 263-266; Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit., p. 66-89.
[25]
Rego, José Pereira, Esboço histórico das
epidemias que têm grassado na cidade do Rio de Janeiro desde 1830 a 1870 (1872), Rio de Janeiro, Typ. Nacional, pp. 58-59.
[26]
No mesmo período em que os teatros foram fechados, como mencionados
anteriormente.
[27]
Nesta e nas demais referências ao Banco de Dados de Óbitos das Freguesias do
Rio de Janeiro, o conteúdo das informações dos livros de registros paroquiais
óbitos das quatro freguesias aqui pesquisadas foi extraído mediante a
transcrição dos assentos relativos ao nosso recorte cronológico que se
encontram no banco de dados de imagens do site FamilySearch, intitulado
“Registros da Igreja Católica, 1616-1980”, disponível em:
https://familysearch.org. As freguesias e respectivos livros consultados são:
Nossa Senhora da Candelária (Óbitos 1833, Ago-1876, Out; Óbitos 1838, Jun-1867,
Jul), são José (Óbitos 1843, Jul-1864, Set; Óbitos 1844, Maio-1851, Jul; Óbitos
1851, Jul-1877, Nov), Santa Rita (inserido entre os registros do Santíssimo
Sacramento como Óbitos 1842, Jan-1851, Fev) e Sant’Ana (Óbitos 1846, Set-1853,
Out). Este Banco de Dados pertence ao conjunto de acervo documental e de outros
Bancos de Dados produzido no âmbito do Grupo de Pesquisa Imagens da
Morte/CNPq-UNIRIO.
[28]
Rego, José Pereira, 1872, Ob. Cit., p. 15.
[29] Avé-Lallemant, Robert, 1851, Ob. Cit., p.11.
[30]
A título de comparação, a análise dos dados para o período anterior à epidemia
de febre amarela apresenta uma quantidade bem inferior, havendo igrejas que
passavam mais de um dia sem receber um único sepultamento.
[31]
“Circular de 16 de Março de 1850”, Proíbe os enterramentos nas Igrejas, e
Conventos da Capital, ou no seu recinto. In: Colecção das Decisões do Governo
do Império do Brasil, Additamento ao Caderno 3º, Tomo XIII, Rio de Janeiro,
Typographia Nacional, 1850, pp. 273-274. Serzedello, Bento José Barbosa, Arquivo histórico da venerável Ordem
Terceira de Nossa Senhora do Monte do Carmo, ereta no Rio de Janeiro desde sua
fundação em 1648 a 1872, Rio de Janeiro, Typ. Perseverança, 1872, p. 326.
Para aprofundamento deste processo ver, Rodrigues, Claudia, 1999, Op. Cit.
[32]
Somente seis anos depois foram proibidos os enterros nas igrejas das freguesias
suburbanas da cidade do Rio. Em Edital de 7 de outubro de 1856, a câmara
municipal determinou a proibição em cumprimento da Portaria da Secretaria dos
Negócios do Império de 25 de setembro. Embora este caso ainda não tenha sido
estudado, é muito provável que tal iniciativa tenha se relacionado à epidemia
de cólera-morbo que atingiu a cidade em 1855. Cf. AGCRJ, Códice 58-2-7. “Edital
de Postura de 7 de outubro de 1856 proibindo enterramentos nas igrejas”.
[33]
Além desses, não podemos esquecer de outros dois cemitérios em área descoberta
da cidade: o Cemitério da Gamboa, destinado aos ingleses e demais não
católicos, localizado nas redondezas da freguesia de Santa Rita, e o Cemitério
do Hospício de Pedro II, destinado aos mortos no Hospício administrado pela
Santa Casa da Misericórdia, localizado no extremo sul da cidade, na Praia
Vermelha, que atendia também aqueles que habitavam essa região mais distante da
área portuária. Cf. Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit., p. 32,
Rodrigues, Cláudia, 1999, Ob. Cit.
[34]
Na dinâmica das associações religiosas, as ordens terceiras reuniam membros da
elite social desde o período colonial. A este respeito, ver Martins, William de
Souza (2009), Membros do corpo místico: ordens terceiras no Rio de Janeiro
(c. 1700-1822), São Paulo, Edusp.
[35]
Monteiro, José Chrysostomo, 1873, Ob. Cit., p. 8 e 14.
[36]
A demais referências são 0,08% no cemitério dos Ingleses, na Gamboa; 1,51% no
terreno provisório concedido à Ordem Terceira de N. S. do Carmo no Campo do
Caju e 0,43% no terreno concedido à Ordem Terceira de S. Francisco da Penitência
no Campo do Caju; 1,99% no cemitério de São Francisco Xavier (criado a partir
de 05 de dezembro de 1851). Cf. Banco de Dados de Óbitos das Freguesias do Rio
de Janeiro.
[37]
Até que fosse inaugurado o primeiro cemitério público extramuros da cidade, no
início de dezembro de 1851, denominado de São Francisco Xavier, localizado no
terreno do antigo Campo Santo da Misericórdia da Ponta do Caju. Um segundo
cemitério público extramuros entrou em funcionamento em dezembro de 1852, no
extremo sul da cidade, denominado São João Batista, situado em área próxima à
do antigo cemitério do Hospício de Pedro II, na Praia Vermelha (que deixou de
funcionar imediatamente). Ambos os cemitérios foram administrados pela Santa
Casa da Misericórdia, que assumiu o monopólio do serviço fúnebre na Corte. A
este respeito, ver Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit.; Rodrigues,
Claudia, 2014, Ob. Cit., pp. 267- e El-Karch, Almir Chaiban (2004), “Um
golpe de mestre: ‘enterrar os mortos e cuidar dos vivos’: José Clemente Pereira
e a aprovação do projeto senatorial de criação de cemitérios públicos no Rio de
Janeiro”, Revista do Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, nº
422, p. 11-32.
[38]
Expressão usada em Monteiro, José Chrysostomo, 1873, Ob. Cit., p. 9.
[39]
Sobre isso ver Rodrigues, Claudia e Bravo, Milra Nascimento (2012), “Morte,
Cemitérios e hierarquias no Brasil escravista (séculos XVIII e XIX)”, Habitus,
vol. 10, pp. 3-30; Bravo, Milra Nascimento (2014), “A morte hierarquizada: os
espaços dos mortos no Rio de Janeiro Colonial (1720-1808)”, Revista do
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, nº 8, pp. 307-329.
[40]
Batista, Henrique Sergio de Araújo (2011), Jardim regado com lágrimas de
saudade: morte e cultura visual na Venerável Ordem Terceira dos Mínimos de São
Francisco de Paula (século XIX), Rio de Janeiro, Arquivo Nacional,.
[41]
Rodrigues, Claudia e Bravo, Milra Nascimento, 2012, Ob. Cit.; Bravo,
Milra Nascimento, 2014, Ob. Cit. Apesar desta diferença entre os dois
cemitérios, os administradores do Catumbi tiveram que abrir sepulturas
gratuitas para pobres e indigentes. Cf. Monteiro, José Chrysostomo, 1873, Ob.
Cit., p. 9.
[42]
Seguem algumas das igrejas das oito freguesias urbanas da Corte: 1) na
freguesia do SANTÍSSIMO SACRAMENTO (Matriz do Santíssimo Sacramento, Ig. da O.
T. de São Fco. de Paula, Ig. da O. T. de São Fco. da Penitência, Ig. de N.ª
Sr.ª do Parto, Ig. do Senhor dos Passos, Ig. do convento de Santo Antônio, Ig.
da O. T. de N.ª Sr.ª da Conceição e B. Morte, Ig. da O. T. de S. Domingos, Ig. do
Senhor Bom Jesus do Calvário, Ig. de N.ª Sr.ª do Rosário, Ig. de Santo Elesbão
e Santa Efigênia, Ig. de S. Gonçalo Garcia e S. Jorge, Ig. de N.ª Sr.ª da
Lampadosa); 2) na freguesia da CANDELÁRIA (Ig. da Ord. Terc. de N.ª Sr.ª do
Carmo, Ig. de N.ª Sr.ª Mãe dos Homens, Ig. de S. Pedro, Ig. Santa Cruz dos
Militares, Ig. de N. S. Lapa dos Mercadores); 3) na freguesia de SÃO JOSÉ (Ig.
de N.ª Sr.ª do Bonsucesso, Ig. de N.ª Sr.ª do Carmo do convento dos Carmelitas,
Ig. de Santa Luzia); 4) na freguesia de SANTA RITA (Matriz de Santa Rita, Ig.
do Mosteiro de S. Bento, Ig. de S. Joaquim); 5) na freguesia de SANTANA (Matriz
de Sant’Anna); 6) na freguesia da GLORIA (Matriz de N. Sra. da Glória); 7) na
freguesia do ENGENHO VELHO (matriz de São Francisco do Engenho Velho); 8) na
freguesia da LAGOA (Matriz de São João Batista da Lagoa). Destaque deve ser
feito para as igrejas matrizes da Candelária e de São José que não davam
sepultura no período aqui analisado e, por isso, seus templos não figuram na
relação acima.
[43]
Banco de Dados de Óbitos das Freguesias do Rio de Janeiro.
[44] Avé-Lallemant, Robert, 1851, Ob. Cit., pp. 11-12.
[45]
Na inexistência de outra representação que contivesse todas as freguesias
urbanas da Corte, faço uso do já clássico mapa elaborado por Mary Karasch que,
entretanto, não contém as freguesias da Lagoa e do Engenho Velho, mas apenas as
seis paróquias mais referidas nos documentos da época.
[46]
Vide, Dom Sebastião Monteiro da (2010[1719]), Constituições primeiras do
Arcebispado da Bahia,. São Paulo, Edição de Bruno Feitler e Evergton Sales
Souza, EdUSP, § 812. Esta forma aparece no manual de Veríssimo dos Martyres,
reeditado várias vezes, que detalha a encomendação do cadáver no Ofício de
Defuntos e vai ao encontro das determinações das constituições sinodais do
Brasil. Cf. Martyres, Verissimo dos (1780), Director
Funebre Reformado para se officiar, e administrar com perfeição o Sacrosanto
Viatico, Extrema-Unção aos enfermos, Enterros, Officios de Defuntos, Procissão
das Almas, e outras funções pertencentes aos mortos, Lisboa, Regia Officina
Typografica.
[47]
Vide, Dom Sebastião Monteiro da, 2010[1719], Ob.
Cit., §§ 813, 814, 815.
[48]
Vide, Dom Sebastião Monteiro da, 2010[1719], Ob. Cit., § 823.
[49]
Vide, Dom Sebastião Monteiro da, 2010[1719], Ob.
Cit., § 823.
[50]
Reforço que os limites deste artigo inviabilizam uma análise mais aprofundada,
que considere as variações sociais, de gênero, de origem, de idade e também por
paróquias, dentre outras, as quais serão feitas em outro momento, considerando
o potencial dos dados recolhidos.
[51]
Os índices de administração dos últimos sacramentos em estudos sobre as
freguesias urbanas do Rio giram em torno de 60%, dificilmente ficando abaixo
desta média. Cf. Rodrigues, Claudia, 1997, Ob.
Cit.; Bravo, Milra Nascimento (2014), As hierarquias na morte:
uma análise dos ritos fúnebres católicos no Rio de Janeiro (1720-1808),
Dissertação de Mestrado em História, Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO.
[52] Araújo, Ana Cristina, 1997, Ob. Cit., p. 230.
[53]
Os 13 casos de encomendação feita em cemitério se referem a escravos ou
libertos encomendados e sepultados no cemitério do Campo Santo da Misericórdia,
no Campo Santo do Caju (antes da criação de cemitérios públicos extramuros),
destinado aos desprivilegiados daquela sociedade e que não conseguiram ser
inumados junto aos templos católicos. Cf. Rodrigues, Claudia e Bravo, Milra
Nascimento, 2012, Ob. Cit.
[54]
Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit., pp. 229-234.
[55]
Monteiro, José Chrysostomo, 1873, Ob. Cit., p. 15.
[56]
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Coleção Marques de Olinda: Exposição
dos motivos, feita por M. B. C. C. M (Manuel, Bispo Conde Capelão-mor) pelos
quais não está de acordo com o aviso de Visconde de Mont’Alegre determinando
que, pelo regulamento sanitário da Corte, fica proibida a encomendação de
corpos nas Igrejas, Palácio da Conceição, 23/04/1850.
[57]
IHGB, Coleção Marques de Olinda, Exposição dos motivos, 23/04/1850, Ob.
Cit., pp. 1-4.
[58]
Aqui, ele parecia considerar as freguesias mais centrais, como Santíssimo
Sacramento, São José, Candelária, Santa Rita, Santana e Glória, destacando as
da Glória e do Engenho Velho, mais distantes das ruas centrais, situação
condizente com a representação das freguesias urbanas do Mapa 1.
[59]
O bispo não cita quais seriam elas, mas imagino que se tratava das da Ordem
Terceira do Carmo e da de São Francisco de Paula.
[60]
Interessante aqui é o termo “privado” usado para diferencias a encomendação
solene e atraía grande quantidade de participantes que possuíam dimensão mais
pública.
[61]
IHGB, Coleção Marques de Olinda, Exposição dos motivos, 23/04/1850, Ob. Cit.,
pp. 4-5.
[62]
IHGB, Coleção Marques de Olinda, Exposição dos motivos, 23/04/1850, Ob. Cit.,
pp. 1-4.
[63]
Santirocchi, Italo Domingos (2016), “O ultramontanismo no Brasil imperial e a
reforma clerical (1840-1889)”, in Ayrolo, Valentina; Oliveira y Anderson José
Machado de (coords.), Historia de clérigos y religiosas em las América: conexiones
entre Argentina y Brasil (siglos XVIII y XIX), Ciudad Autónoma de Buenos
Aires, Teseo, p. 402.
[64]
Santirocchi, Italo Domingos (2015), Questão de Consciência: os ultramontanos
no Brasil e o regalismo do Segundo Reinado (1840-1889), Fino Traço, Belo Horizonte,
MG, pp. 120 e Bastos, Ana Marta Rodrigues (1997), Católicos e Cidadãos: a
Igreja e a legislação eleitoral no Império, Rio de Janeiro, Lúmen Júris,
pp. 12-13.
[65]
Santirocchi, Italo Domingos (2013), “Ela está no meio de nós: a Santa Sé e sua
tentativa de recuperação de autoridade no Brasil Imperial”, in Anais do
XVIII Encontro Regional da ANPUH MG: Dimensões do poder na história,
Trabalho Completo, pp. 1-2 e Santirocchi, Italo Domingos, 2016, Ob. Cit.,
p. 404-405.
[66]
Blake, Augusto Victorino Alves Sacramento (1900), Diccionario bibliographico
brasileiro, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, vol. 6,
pp. 164-167.
[67]
Albani, Benedetta; Martins, Anna Clara Lehmann Martins (2020), “A governança da
Igreja escrita entre o nacional e o global: a presença das congregações
cardinalícias em manuais brasileiros de direito eclesiástico (1853-1887)”, Almanack,
nº 26, pp. 21-22; 58.
[68]
Albani, Benedetta; Martins, Anna Clara Lehmann Martins, 2020, Ob. Cit.,
p. 61.
[69]
Sobre este jornal católico, que circulou na cidade do Rio de Janeiro entre 1848
e 1850, ver Oliveira, Anderson José Machado de (1995), Devoção e Caridade:
irmandades religiosas no Rio de Janeiro imperial (1840-1889), Dissertação
de Mestrado em História, Programa de Pós-graduação em História Universidade
Federal Fluminense, Niterói, p. 70-71; 85-86. Abreu, Martha (1999), O
império do divino: festas religiosas e cultura popular no Rio de Janeiro,
1830-1900, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, p. 78.
[70]
BN/RJ, Obras Raras, A religião, nº 2, vol. III, 15 de julho de 1850.
[71]
Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit.; Batista, Henrique Sergio de
Araújo (2011), Ob. Cit., p. 138.
[72]
BN/RJ, Obras Raras, A religião, n. 2, vol. III, 15 de julho de 1850.
[73]
BN/RJ, Obras Raras, A religião, n. 2, vol. III, 1º de agosto de 1850.
[74]
Para tal, se dirigiu à Roma e, lá, mediante autorização papal (Gregório XVI),
obteve acesso às catacumbas de S. Sebastião, escolhendo as relíquias de Santa
Prisciliana, virgem mártir, imolada nas primeiras perseguições do início do
Cristianismo. Providenciou o adorno dos ossos sagrados com cera para dar o
formato de uma donzela, transportando-o numa arca para o Rio de Janeiro.
Contando com a participação do Bispo D. Manoel do Monte Araújo, uma grande e
pomposa procissão foi realizada em 17 de maio de 1846 para traslado da imagem
da santa para a Igreja paroquial de Santana, na qual a santa relíquia ficou
exposta para veneração do clero, irmandades e população – e lá se encontra até
hoje –, amealhando esmolas e tornando-se a base de uma irmandade instalada na
paróquia com o nome da santa, Irmandade da Sagrada Virgem Mártir Priscilliana.
Cf. Ewbank, Thomas (1976), A vida no Brasil, Belo Horizonte, Itatiaia;
São Paulo, Edusp, pp. 221-227.
[75]
Monteiro, José Chrysostomo, 1873, Ob. Cit., pp. 21-23.
[76]
Monteiro, José Chrysostomo, 1873, Ob. Cit., p. 20.
[77]
Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit., pp. 137-138.
[78]
Vasconcellos, Zacarias de Góes e (1879), Legislação sobre a Empresa
Funerária e os cemitérios da cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Typ.
da Escola de Serafim José Alves.
[79]
Rodrigues, Claudia, 1997, Ob. Cit.
[80]
Rodrigues, Claudia (2005), Nas fronteiras do além: a secularização da morte
no Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX), Rio de Janeiro, Arquivo Nacional,
pp. 212-216.
[81]
Carvalho, José Murilo de (1996), A Construção da Ordem: a elite política
imperial; Teatro das Sombras: A política imperial. 2.ed, Rio de Janeiro, Relume-Dumará: UFRJ.
[82] Rodrigues,
Claudia (2005), Ob. Cit.; Rodrigues, Claudia (2010), “Os cemitérios
públicos como alvo das disputas entre Igreja e Estado na crise do Império
(1869-1891)”, Dialogos, vol.13, p. 119 – 142.